Charlot defende a relação
com o saber e busca “compreender como o sujeito categoriza, organiza seu mundo,
como ele dá sentido à sua experiência e especialmente à sua experiência escolar
[...], como o sujeito apreende o mundo e, com isso, como se constrói e
transforma a si próprio” (CHARLOT, 2005, p. 41). Suas pesquisas, juntamente com
a equipe ESCOL pesquisas, tem como ponto de partida a relação entre a origem
social e sucesso ou fracasso escolar. Tem como fundo os trabalhos da Sociologia
da Reprodução, em especial os de Bourdieu.
Para Charlot (2005, p. 40), não
se deve analisar a sociedade apenas tomando como referencial as posições
sociais. É preciso considerar “o sujeito na sua singularidade de sua história e
atividades que ele realiza”, visto que cada aluno pertence a um grupo, uma
posição social e interpreta singularmente essa posição, dando sentido ao mundo
e a si mesmo. Para Charlot, o sujeito é um ser humano social que ocupa uma
posição social adquirida por pertencer a um grupo social. Porém, durante sua da
vida, produz sentidos e significados sobre si e o mundo, construindo sua
singularidade. Assim é ao mesmo tempo singular e social. Charlot, não fala em
“aspectos” sociais e individuais do sujeito – ele é sempre simultaneamente social
e singular (CHARLOT, 2005). Para o autor, “[...] as relações sociais estruturam
a relação com o saber e com a escola, mas não a determinam” (CHARLOT, 2000, p.
62).
Para compreender um pouco
mais sobre a teoria da relação com o saber de Charlot, leia esse trecho do
texto de Guilherme Trópia e Ademir Donizeti Caldeira: Vínculos entre a relação
com o saber de Bernard Charlot e categorias bachelardianas, publicado em: Educação,
Porto Alegre, v. 34, n. 3, p. 369-375, set./dez. 2011, disponível em:
Segue a
transcrição de um trecho do texto, “Bernard Charlot e a relação com o saber”
Bernard Charlot nasceu na França, em
1944. Com formação inicial em Filosofia, realizou pesquisas na área da
epistemologia das ciências, sob a orientação de Georges Canguilhem. Seus
primeiros trabalhos tratavam da noção da experiência na obra dos cartesianos e
anticartesianos franceses da segunda metade do século XVII.
O primeiro contato de
Charlot com a educação foi aos 25 anos, quando lecionou para professores do
Ensino Fundamental na Universidade de Tunis. A partir dessa e de outras
experiências, Charlot começou a pesquisar na área educacional, concluindo o
Doutorado em Educação pela Universidade de Paris X. É professor emérito em
Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII, onde foi professor
catedrático e fundou a equipe de pesquisa ESCOL (Educação, Socialização e
Coletividades Locais), que estuda sobre a relação com o saber e com a escola,
além de assuntos referentes à territorialização das políticas educativas.
Atualmente, é consultor e responsável de pesquisa da United Nation Educational,
Scientific and Cultural e professor visitante da Universidade Federal de
Sergipe, em Aracaju, Brasil, onde vive.
As pesquisas de Charlot e da
equipe ESCOL sobre a relação com o saber buscam “compreender como o sujeito
categoriza, organiza seu mundo, como ele dá sentido à sua experiência e
especialmente à sua experiência escolar [...], como o sujeito apreende o mundo
e, com isso, como se constrói e transforma a si próprio” (CHARLOT, 2005, p.
41). Essas pesquisas partem de uma relação entre a origem social e sucesso ou
fracasso escolar e também de trabalhos da Sociologia da Reprodução, em especial
os de Pierre Bourdieu.
Bourdieu é considerado um
dos mais importantes sociólogos do século XX. Seus trabalhos são referência na
interpretação sociológica da educação. Em oposição à concepção funcionalista,
em que a escola tinha o papel central na democratização da sociedade, Bourdieu
formulou uma teoria bem fundamentada para a questão das desigualdades escolares
a partir dos anos 60. Esse autor coloca a escola como uma instituição que
reproduz e legitima a dominação exercida pelas classes sociais dominantes.
Bourdieu e Passeron (1975) discutem que a reprodução acontece indiretamente,
pelo fato de os alunos das classes dominantes possuírem os códigos necessários
para decodificar a cultura escolar, enquanto os das classes dominadas não os
possuírem, ficando à margem dessa cultura.
Segundo Nogueira e Nogueira
(2002), a grande contribuição de Bourdieu para compreensão sociológica da
escola ocorreu ao postular que essa instituição não é neutra, ou seja, as
oportunidades e as chances de obter sucesso na escola não são as mesmas para
crianças de diferentes classes sociais.
No entanto, apesar da grande
contribuição de Bourdieu para a Sociologia da Educação, Charlot (1996) apresenta
alguns limites dessa análise educacional. Ele destaca que a teoria da
reprodução não dá importância às práticas de ensino nas salas de aula e às
políticas específicas dos estabelecimentos escolares, aspectos estes que podem
ter um efeito diferenciador na reprodução das desigualdades sociais na escola.
Charlot ainda critica o fato de essa teoria reduzir a instituição escolar a um
espaço de diferenciação social, esquecendo-se que ela é também um lugar de
formação dos jovens. Para Charlot, há uma relação estatística entre a origem
social da criança e seu sucesso ou fracasso escolar, enfatizando, entretanto,
que essa relação não é de causa.
Nessa perspectiva,
fundamentar-se-á a teoria da relação com o saber, em que a análise educacional
reprodutivista não é suficiente para compreender a experiência escolar do
aluno, levando em conta as diferenças no modo como cada um participa do
processo de reprodução social. A condição de dominação não pode eliminar a de
sujeito – alguém que interpreta o mundo e age no mundo, buscando construir a
melhor situação possível a partir de sua forma de vida. A sociedade não pode
ser analisada apenas em termos de posições sociais, sendo preciso “levar em
consideração o sujeito na sua singularidade de sua história e atividades que
ele realiza” (CHARLOT, 2005, p. 40). Cada aluno pertence a um grupo, uma
posição social, o que Charlot chama de posição social objetiva. Mas cada um
interpreta singularmente essa posição para dar sentido ao mundo e a si mesmo, o
que o autor chama de posição social subjetiva.
A partir dessas ideias,
Charlot (2000) explicita uma concepção de sujeito presente nos estudos da
relação com o saber, mostrando como aquela está intimamente ligada a esta. Na
teoria de Charlot, o sujeito é, ao mesmo tempo, um ser humano singular e
social. Assim, é um ser que ocupa uma posição social adquirida por pertencer a
um grupo social e, ao longo da vida, produz sentidos e significados sobre si e
o mundo, construindo sua singularidade. Portanto, na concepção de sujeito
expressa por Charlot, não se fala de “aspectos” sociais e individuais do
sujeito – ele é sempre simultaneamente social e singular (CHARLOT, 2005).
Outro aspecto na compreensão
do sujeito é a questão da aprendizagem. O aprender está presente e é condição
obrigatória no processo de construção do sujeito, que envolve tornar-se um
membro da espécie humana (hominizar-se), um ser humano único (singularizar-se)
e um membro de uma comunidade, ocupando nela um lugar (socializar-se). É
através do aprender que o sujeito se constrói, relacionando consigo próprio,
com os outros a sua volta e com o mundo em que está inserido.
Aprender para viver
com os outros homens com quem o mundo é compartilhado. Aprender para
apropriar-se do mundo, de uma parte desse mundo, e para participar da
construção de um mundo pré-existente. Aprender em uma história que é, ao mesmo
tempo, profundamente minha, no que tem de única, mas que me escapa por toda a
parte. Nascer, aprender, é entrar em um conjunto de relações e processos que
constituem um sistema de sentido, onde se diz quem eu sou, quem é o mundo, quem
são os outros (CHARLOT, 2000,p. 53).
Cabe aqui discutir que
relação com o saber é essa. Para isso, levantamos duas questões: Que saber é
esse? Que relação é essa? Para definir o saber, Charlot (2000) apresenta os
conceitos de saber e aprender. O primeiro, no sentido estrito da palavra,
significa um conteúdo intelectual; o segundo tem um significado mais amplo, já que
existem várias formas de aprender: pode ser adquirir um saber (aprender
Fisiologia, Matemática), dominar um objeto ou uma atividade (aprender a
escrever, a andar de bicicleta), entrar em formas relacionais (aprender a
cumprimentar, a mentir). Nesse contexto, o aprender não fica restrito à
obtenção do conteúdo intelectual, mas abrange todas as relações que o sujeito
estabelece para adquiri-lo. Assim, quando Charlot explora a relação com o
saber, ele amplia essa noção para uma relação com o aprender.
Mas por que essa ampliação?
Por que não falar da relação com o saber apenas no sentido de obtenção do
conteúdo intelectual pelo sujeito? De acordo com Charlot (2000), o saber é uma
forma de representação de uma atividade, de relações do sujeito com o mundo,
com ele mesmo e com outros. Assim, “não há saber que não esteja inscrito em
relações de saber” (CHARLOT, 2000, p. 63), levando o autor a assumir a postura
de que a educação deveria ter como objeto os processos os quais levam o sujeito
a adotar uma relação com o saber, e não apenas a acumulação de conteúdos
intelectuais.
No entanto, que relação é
essa? Charlot apresenta três dimensões da relação com o saber: a epistêmica, a
social e a de identidade, que permitem compreender as relações com o saber
trabalhadas pelo autor. A relação epistêmica com o saber parte de que o
“aprender” não significa a mesma coisa para os alunos. Entender a relação
epistêmica que um aluno possui com o saber é compreender a natureza da
atividade que se denomina “aprender” para esse sujeito. Charlot (1996), em
pesquisa realizada em escolas de diferentes classes sociais na França,
evidencia que há diferenças no significado de aprender para os alunos de
classes sociais diferentes. Aprender pode ser adquirir um saber ou obrigações
escolares, ou seja, cumprir as exigências institucionais como estudante na
escola.
A relação com o saber também
é social, pois exprime as condições sociais do indivíduo e as relações sociais
que estruturam a sociedade na qual esse indivíduo está inserido. No entanto,. O
fato de um sujeito estabelecer uma relação com o saber que corresponda com sua
identidade social não quer dizer que há uma relação causal entre elas, pois a
relação com o saber também é singular Charlot (2000, p. 62) enfatiza que “[...]
as relações sociais estruturam a relação com o saber e com a escola, mas não a
determinam”do sujeito com o saber. Charlot (1996) aponta que os jovens com as
mesmas condições de existência e atuantes nas mesmas relações sociais não
estabelecem a mesma relação com o saber.
A relação com o saber também
é de identidade com o saber. Todo processo de “aprender” constitui uma
construção de si mesmo, uma construção da identidade do sujeito. A relação de
identidade com o saber também é construída na relação com o outro, que é o
outro fisicamente presente que o ajuda a aprender algo ou o outro virtual que
compõe a comunidade daqueles com um saber determinado.
Assim, analisar a relação de
um sujeito com o saber é entender as relações epistêmicas, sociais e
identitárias desse ser imerso no processo de aprendizagem, sendo que essas
dimensões não estão fragmentadas nesse processo. Tais relações ocorrem
simultaneamente, e é assim que Charlot e sua equipe promovem suas pesquisas
para compreender que sentidos os alunos de classes sociais diferentes atribuem
ao saber e à escola, dando uma nova perspectiva entre as desigualdades sociais
e o sucesso ou fracasso escolar.
Sandra Reis