O sociólogo francês detectou mecanismos de conservação e reprodução em todas as áreas da atividade humana, entre elas, o sistema educacional
Revista Nova Escola - Especial Grandes Pensadores – Outubro 2008
Texto
disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/historia/fundamentos/pierre-bourdieu-428147.shtml
Márcio
Ferrari
Pierre Bourdieu
Embora a maioria dos grandes pensadores da educação
tenha desenvolvido suas teorias com base numa visão crítica da escola, somente
na segunda metade do século 20 surgiram questionamentos bem fundamentados sobre
a neutralidade da instituição. Até ali a instrução era vista como um meio de
elevação cultural mais ou menos à parte das tensões sociais. O francês Pierre
Bourdieu (1930-2002) empreendeu uma investigação sociológica do conhecimento
que detectou um jogo de dominação e reprodução de valores.
Suas pesquisas exerceram forte
influência nos ambientes pedagógicos nas décadas de 1970 e 1980. "Desde
então, as teorias de reprodução foram criticadas por exagerar a visão
pessimista sobre a escola", diz Cláudio Martins Nogueira, professor da Universidade
Federal de Minas Gerais. "Vários autores passaram a mostrar que nem sempre
as desigualdades sociais se reproduzem completamente na sala de aula." Na
essência, contudo, as conclusões de Bourdieu não foram contestadas.
Na mesma época em que as
restrições a sua obra acadêmica se tornaram mais frequentes, a figura pública
do sociólogo ganhou notoriedade pelas críticas à mídia, aos governos de
esquerda da Europa e à globalização. Ele costuma ser incluído na tradição
francesa do intelectual público e combativo, a exemplo do escritor Émile Zola
(1840-1902) e do filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980).
Valores incorporados
O livro A Reprodução
(1970), escrito em parceria com Jean-Claude Passeron, analisou o funcionamento
do sistema escolar francês e concluiu que, em vez de ter uma função
transformadora, ele reproduz e reforça as desigualdades sociais. Quando a
criança começa sua aprendizagem formal, segundo os autores, é recebida num
ambiente marcado pelo caráter de classe, desde a organização pedagógica até o
modo como prepara o futuro dos alunos.
Para construir sua
teoria, Bourdieu criou uma série de conceitos, como habitus e capital cultural.
Todos partem de uma tentativa de superação da dicotomia entre subjetivismo e
objetivismo. "Ele acreditava que qualquer uma dessas tendências, tomada
isoladamente, conduz a uma interpretação restrita ou mesmo equivocada da
realidade social", explica Nogueira. A noção de habitus procura evitar
esse risco. Ela se refere à incorporação de uma determinada estrutura social pelos
indivíduos, influindo em seu modo de sentir, pensar e agir, de tal forma que se
inclinam a confirmá-la e reproduzi-la, mesmo que nem sempre de modo
consciente.
Um exemplo disso: a
dominação masculina, segundo o sociólogo, se mantém não só pela preservação de
mecanismos sociais mas pela absorção involuntária, por parte das mulheres, de
um discurso conciliador. Na formação do habitus, a produção simbólica -
resultado das elaborações em áreas como arte, ciência, religião e moral -
constitui o vetor principal, porque recria as desigualdades de modo indireto,
escamoteando hierarquias e constrangimentos.
Assim, estruturas
sociais e agentes individuais se alimentam continuamente numa engrenagem de
caráter conservador. É o caso da maneira como cada um lida com a linguagem.
Tudo que a envolve - correção gramatical, sotaque, habilidade no uso de
palavras e construções etc. - está fortemente relacionado à posição social de
quem fala e à função de ratificar a ordem estabelecida. Para Bourdieu, todas
essas ferramentas de poder são essencialmente arbitrárias, mas isso não costuma
ser percebido. "É necessário que os dominados as percebam como legítimas,
justas e dignas de serem utilizadas", afirma Nogueira.
Capital cultural
Outro conceito utilizado por Bourdieu é o de campo,
para designar nichos da atividade humana nos quais se desenrolam lutas pela
detenção do poder simbólico, que produz e confirma significados Esses conflitos
consagram valores que se tornam aceitáveis pelo senso comum. No campo da arte,
a luta simbólica decide o que é erudito ou popular, de bom ou de mau gosto. Dos
elementos vitoriosos, formam-se o habitus e o código de aceitação social.
Os indivíduos, por sua vez, se posicionam nos
campos de acordo com o capital acumulado - que pode ser social, cultural, econômico
e simbólico. O capital social, por exemplo, corresponde à rede de relações
interpessoais que cada um constrói, com os benefícios ou malefícios que ela
pode gerar na competição entre os grupos humanos. Já na educação se acumula
sobretudo capital cultural, na forma de conhecimentos apreendidos, livros,
diplomas etc.
Com os instrumentos teóricos que criou, Bourdieu
afastou de suas análises a ênfase central nos fatores econômicos - que
caracteriza o marxismo - e introduziu, para se referir ao controle de um
estrato social sobre outro, o conceito de violência simbólica, legitimadora da
dominação e posta em prática por meio de estilos de vida. Isso explicaria por
que é tão difícil alterar certos padrões sociais: o poder exercido em campos
como a linguagem é mais eficiente e sutil do que o uso da força propriamente
dita.
Os sutis artifícios de
perpetuação
Escola de
filhos de imigrantes ilegais na França: desigualdade tende a se
reproduzir.
Para Bourdieu, a escola é um espaço de reprodução
de estruturas sociais e de transferência de capitais de uma geração para outra.
É nela que o legado econômico da família transforma-se em capital cultural. E
este, segundo o sociólogo, está diretamente relacionado ao desempenho dos
alunos na sala de aula. Eles tendem a ser julgados pela quantidade e pela
qualidade do conhecimento que já trazem de casa, além de várias
"heranças", como a postura corporal e a habilidade de falar em
público. Os próprios estudantes mais pobres acabam encarando a trajetória dos
bem-sucedidos como resultante de um esforço recompensado. Uma mostra dos
mecanismos de perpetuação da desigualdade está no fato, facilmente verificável,
de que a frustração com o fracasso escolar leva muitos alunos e suas famílias a
investir menos esforços no aprendizado formal, desenhando um círculo que se
auto-alimenta. Nos primeiros livros que escreveu, Bourdieu previa a
possibilidade de superar essa situação se as escolas deixassem de supor a
bagagem cultural que os alunos trazem de casa e partissem do zero. Mas, com o
passar do tempo, o pessimismo foi crescendo na obra do sociólogo: a competição
escolar passou a ser vista como incontornável.
Biografia
Pierre Bourdieu nasceu em 1930 no vilarejo de
Denguin, no sudoeste da França. Fez os estudos básicos num internato em Pau,
experiência que deixou nele profundas marcas negativas. Em 1951 ingressou na
Faculdade de Letras, em Paris, e na Escola Normal Superior. Três anos depois,
graduou-se em filosofia. Prestou serviço militar na Argélia (então colônia
francesa), onde retomou a carreira acadêmica e escreveu o primeiro livro, sobre
a sociedade cabila. De volta à França, assumiu a função de assistente do
filósofo Raymond Aron (1905-1983) na Faculdade de Letras de Paris e, simultaneamente,
filiou-se ao Centro Europeu de Sociologia, do qual veio a ser secretário-geral.
Bourdieu publicou mais de 300 títulos, entre livros e artigos. Fundou as
publicações Actes de la Recherche en Sciences Sociales e Liber. Em 1982, propôs
a criação de uma "sociologia da sociologia" em sua aula inaugural no
Collège de France, levando esse objetivo em frente nos anos seguintes. Quando
morreu de câncer, em 2002, foi tema de longos perfis na imprensa européia. Um
ano antes, um documentário sobre ele, Sociologia É um Esporte de Combate, havia
sido um sucesso inesperado nos cinemas da França. Entre seus livros mais
conhecidos estão A Distinção (1979), que trata dos julgamentos estéticos como
distinção de classe, Sobre a Televisão (1996) e Contrafogos (1998), a respeito
do discurso do chamado neoliberalismo.
A globalização e os descontentes
Bourdieu tornou-se ideólogo e símbolo dos protestos
contra a globalização econômica e cultural, sobretudo depois do lançamento, em
1993, do livro A Miséria do Mundo. Ele assumiu um papel ativo de apoio à greve
do servidores franceses, em 1995 e 1996, por julgar que ela representava um
sinal de resistência do espírito público contra as privatizações. Desde então,
posicionou-se fortemente contra a tendência política neoliberal e todas as
outras que considerava aparentadas a ela, incluindo a linha de moderação
adotada pelos partidos de esquerda que chegaram ao poder na Europa. Grupos
movidos por insatisfação semelhante à de Bourdieu amplificaram seus protestos
durante a reunião da Organização Mundial do Comércio em Seattle, nos Estados
Unidos, em 1999, dando origem ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre. Com suas
críticas a uma ordem que considerava excludente, Bourdieu centrou fogo contra
os meios de comunicação, que acusava de renderem-se à lógica do comércio e
produzirem lixo cultural em larga escala.
Para pensar
Frequentemente fazemos, sem perceber, julgamentos
severos com base em motivos nada consistentes ou, pior, preconceituosos. Na
escola, é comum alunos serem discriminados por causa de sua aparência e seus
hábitos. Você já observou como muitas vezes isso é uma manifestação de
sentimentos de superioridade de alguns grupos sociais em relação a outros?
Quer saber mais?
A Reprodução: Elementos para uma Teoria do Sistema
de Ensino,
Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu, 312 págs., Ed. Francisco Alves.
A Economia das Trocas Simbólicas, Pierre Bourdieu, org. Sergio
Miceli, 424 págs., Ed. Perspectiva. reais
Bourdieu e a Educação, Maria Alice Nogueira e Cláudio
M. Martins Nogueira, 152 págs., Ed. Autêntica.
Escritos de Educação, Pierre Bourdieu, org. Maria
Alice Nogueira e Afrânio Catani, 256 págs., Ed. Vozes.
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