Pesquisador
francês afirma que, quando faltam reflexão no saber e prazer e aventura em
classe, a escola perde o sentido original
Revista Nova Escola. Edição 195. Outubro 2006.
Texto disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/formacao-continuada/bernard-charlot-conflito-nasce-quando-professor-nao-ensina-609987.shtml.
Cristiane Marangon
"Há
duas línguas diferentes sendo faladas na escola: a dos professores e a dos
alunos." Para Bernard Charlot, professor de Ciências da Educação da
Universidade de Paris 8 e da pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe,
essa tensão existe porque os dois lados desconhecem o prazer do saber. Sem
dramatizar os conflitos nem apresentar vítimas e culpados - o que seria muito
simplório para uma questão tão profunda -, o pesquisador passou quase 20 anos
estudando, principalmente em escolas da periferia da França, a relação que as
pessoas estabelecem com o conhecimento. Os jovens gostam de aprender? O que
determina o interesse pelos estudos? Seu objetivo principal é descobrir por que
alguns adolescentes pobres não avançam na Educação formal, enquanto outros se
revelam bem-sucedidos. Grande parte dos trabalhos foi realizada pelo grupo de
pesquisa Escol (Educação, Socialização e Coletividades Locais) na Universidade
de Paris 8 desde 1987. Um dos pontos de destaque é a semelhança entre os
educadores brasileiros e franceses. A hipótese é que existem situações, como as
de ensino, que são universais. Hoje, Charlot acompanha de perto a realidade das
escolas brasileiras, principalmente as do Nordeste. Aos 62 anos, vive em
Aracaju, casado com uma professora brasileira. A seguir, os principais trechos
da entrevista realizada em São Paulo.
Por que a relação entre alunos e professores é tão
difícil?
Charlot
Para
os alunos, há uma lógica no ato de estudar e, para os professores, há outra.
Ouço muito das crianças: "Fui a todas as aulas, estudei em casa e não
concordo com as notas que recebi". O professor retruca, afirmando que o
estudante é preguiçoso e não entendeu a matéria. Esse descompasso revela o
grande abismo que existe entre as pessoas e interfere no processo de aprendizagem.
Quem está com a razão, os professores ou os alunos?
Charlot O objetivo de minhas
pesquisas não é encontrar vítimas e vilões. Os dois lados têm suas razões. E
digo isso com sinceridade. Qual a trajetória de alunos e professores na
construção do saber? Isso sim é importante e explica o ponto de vista de cada
um. Estudar a ótica do outro é a primeira lição que alunos e professores
precisam aprender. Mesmo assim, o diálogo verdadeiro ainda é muito difícil.
Qual é o sentido da escola para os alunos?
Charlot As crianças
francesas acham que, como seus pais, que ganham por hora de trabalho, deveriam
ser recompensadas pela quantidade de tempo passado em frente dos livros. Ou
seja, as notas deveriam ser proporcionais ao estudo. Mas, é óbvio, essa não é a
lógica da escola. A instituição escolar defende que, se o estudante não fez as
tarefas, não leu nem adquiriu um saber intelectual, ele pode ser reprovado.
Para esse aluno, isso é uma injustiça, algo ilógico. A maioria dos estudantes
gosta de ir à escola para comer, namorar e brincar. Nunca ouço que é um lugar
para aprender. Para eles, os estudos, os trabalhos e as pesquisas existem para
atender apenas aos interesses da escola. Assim, professores pensam que ensinam
e alunos pensam que estudam.
Como
fazer os alunos estudarem e os professores ensinarem de fato?
Charlot Há milhares de
motivos pelos quais os jovens imaginam que a escola é o lugar do lazer e não do
saber. É importante descobri-los, mais do que criticar. Os conflitos nascem
quando o professor explica algo que não é compreendido. Ainda tranqüilo, e com
outras palavras, ele explica de novo, e outra vez sem sucesso. Rapidamente, ele
vai considerar o estudante um incapaz. O educador culpa o aluno, mas se sente
fracassado também porque a turma não avança. O jovem, por seu lado, pensa que o
professor não sabe ensinar. O clima fica tenso e uma coisa sem importância vira
estopim para uma agressão verbal ou física.
O professor não age dessa forma porque está
sobrecarregado de tarefas?
Charlot Ser professor hoje
em dia é uma missão quase impossível. É preciso ter jogo de cintura para
enfrentar as diversas contradições. O aluno vai à escola sem ter recebido uma
socialização prévia. No passado, quando apenas uma pequena parte da população
tinha acesso à Educação formal, não havia esse problema. Os pais preparavam os
filhos para essa etapa da vida e os irmãos mais velhos, que também freqüentavam
a escola, ajudavam os mais novos. Porém, quando toda a população passa a
estudar, você se vê diante de crianças que não foram preparadas para as
situações de aprendizagem. A dificuldade atual da escola é conseqüência da
democratização. E quem há de reclamar disso?
Por que tantos professores criam imagem de um aluno
ideal?
Charlot Essa questão é muito
complicada. O professor espera encontrar em sala de aula um clone ideal dele
mesmo, ou seja, uma pessoa que ele gostaria de ser: crítico, reflexivo, leitor
e dedicado. Mas o professor também deseja alunos obedientes. E essa contradição
é insolúvel. Como ser, ao mesmo tempo, obediente, crítico e inquieto com a
realidade? Na verdade, os critérios estão quase sempre baseados no
comportamento: muitos acreditam que o bom aluno é aquele que não atrapalha o
andamento da aula, chega na hora certa, levanta a mão para fazer perguntas
inteligentes e conta com o interesse dos pais pelos estudos.
E os alunos, o que esperam dos professores?
Charlot Uma vez ouvi esta
frase: "Gosto muito do meu professor porque ele nos trata como seres
humanos". Ilude-se quem pensa que os meninos e as meninas esperam um amigo
ou um colaborador mais velhos. Os jovens querem se relacionar com um
profissional maduro. Outro ponto importante: eles não querem ser números. Não
há nada pior para uma criança ou um adolescente do que encontrar seu professor
na rua e não ser reconhecido. Os jovens não agüentam ser tratados como
anônimos. Isso confirma uma das principais competências que se espera de um
profissional da Educação - a capacidade de se relacionar. E acrescento: com
humor, que é o melhor remédio para enfrentar as contradições do universo da
Educação.
Sempre houve conflito entre quem ensina e quem aprende?
Charlot Sim, porque existe
uma tensão que faz parte do ato pedagógico. O primeiro problema que o docente
enfrenta é não produzir diretamente seu trabalho. Explico: o que faz o aluno
aprender é sua própria atividade intelectual, não a do mestre. O trabalho do
educador é despertar e promover essa atividade. É assim, sempre foi e sempre
será, em qualquer sociedade e época. Se o estudante fracassa, a culpa é do
professor, por mais que ele não tenha o poder de enfiar o saber dentro da
cabeça do jovem. Essa tensão se converte facilmente em conflito quando o aluno
se sente pressionado ou enganado. Mas os conflitos nem sempre são negativos.
Penso que é uma sorte viver tantas contradições. Para ser feliz é preciso
renunciar a uma idéia enganosa de felicidade. O humor, a reflexão e o prazer
são imprescindíveis para aceitar as diferenças e é isso que permite avançar. Já
imaginou uma escola sem conflitos? Seria muito monótona.
Qual é o maior problema no dia a dia escolar?
Charlot A avaliação é campeã
de dúvidas, discórdias e desatinos. Precisamos refletir mais sobre o assunto. O
modelo baseado em assinalar uma alternativa, em certo ou errado, em verdadeiro
ou falso, não mede a atividade intelectual. Essa história começou quando o
Brasil passou a selecionar alunos para o curso de Medicina, como nos Estados
Unidos. Os saberes científicos podem ser medidos em falsos e verdadeiros, mas
não os conteúdos de Filosofia, Língua Portuguesa, Pedagogia e História. É um
absurdo o que se vê aqui. Até na Educação Infantil já se encontram
vestibularzinhos. Esse erro a França não comete. É verdadeiro que o Sol se põe
no oeste? Sob um ponto de vista, sim. Sob outro, não, já que o Sol não sai do
lugar. O mundo do verdadeiro ou falso é do fanatismo e não da cidadania. Nega a
reflexão e o saber e impede que os alunos leiam, escrevam e aprendam.
A
relação do jovem pobre e do rico com a escola é a mesma?
Charlot Uma pesquisa feita na
França com estudantes do Ensino Médio mostrou que eles usam o que foi aprendido
na escola para pensar e construir novos saberes. Eles conseguem fazer essa
transposição. Não há relação direta entre fracasso escolar e classe social.
Apesar de, em termos estatísticos, existir uma probabilidade maior de alguém de
classe popular fracassar nos estudos, muitos são bem-sucedidos. Mas também há
uma grande quantidade de filhos da classe média que são reprovados. Minhas
pesquisas têm por objetivo entender o que acontece especificamente com os que
enfrentam dificuldades. Se o pai é imigrante, está desempregado ou ausente, não
importa para a análise, mas sim o que a criança faz dessas condições. Para
isso, precisamos saber se ela estuda e, principalmente, por que estuda - ou
seja, que sentido tem a escola para ela. Esse aspecto é interessante e
inusitado.
Que motivos levam uma criança pobre a querer estudar?
Charlot A maioria dos alunos
acredita desempenhar seu papel em ir à escola todos os dias, não fazer muitas
bobagens e escutar o professor. Enfim, cumprir um protocolo. Eles vão à escola
para passar de ano até conseguir um trabalho, dinheiro e uma vida considerada normal
- e não necessariamente para construir capacidades. A primeira lição que
aprendem é obedecer. E aí se vê um pacto silencioso de cumplicidade com os
professores: "Você obedece e não atrapalha minhas aulas. Em contrapartida
eu só passo lições e provas fáceis". Para outros jovens, o estudo é uma
conquista permanente que exige muita força de vontade, esforço e dedicação. No
geral, pobres e ricos apresentam as mesmas características. Nos dois lados,
encontramos o tipo que não sabe o que está fazendo no colégio.
É papel da escola garantir o sucesso profissional dos
alunos no futuro?
Charlot Eu estou convencido
de que não, apesar de essa ser uma questão muito presente hoje. Quando
perguntamos a alguém por que ir à escola, a resposta imediata é "obter um
emprego". Muitos se esquecem de que não é a escola que garante o emprego.
Ela tem outro papel, bem mais amplo e importante. Para conseguir uma boa
colocação no mercado de trabalho, é preciso adquirir saberes, desenvolver a
imaginação, construir referências para entender o que é a vida, o que é o mundo
e o que é a convivência com os outros. Há uma grande perda de tempo e energia
quando isso não acontece. Todos se sentem lesados, e não poderia ser diferente.
Quando não garante esse sucesso no mercado de trabalho, a
escola acaba por punir os mais pobres.
Charlot Quando a Educação se
preocupa demais com o mercado de trabalho, ela exclui os mais pobres. A escola
e o saber ainda são a grande chance de ascensão social para muitos e estão se
tornando uma maldição para os jovens mais fracos e mais desfavorecidos
economicamente. Quem não tem um diploma não consegue emprego, certo? O mesmo
vale na França, no Brasil e em qualquer lugar do mundo. A escola ideal é aquela
que faz sentido para todos e na qual o saber é fonte de prazer. Isso não quer
dizer que dispense esforço. O esportista, para ter satisfação, se empenha
muito. Ainda hoje, um grande número de professores pensa que sua função é dar
respostas, mas elas não significam nada se não houve um questionamento anterior.
Os estudantes estão decorando coisas que nem sequer entendem. O trabalho do
professor é fazer nascer novas questões e o interesse pela escola. Caso
contrário, ele gasta o ano letivo em embates sem solução.
Como seria uma escola com a cara do jovem?
Charlot O jovem não quer uma
escola com a cara dele, mas uma que faça a ponte entre a história coletiva do
ser humano e sua história individual. Uma escola com a cara do jovem teria a
cara da Xuxa. Urgh!
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA
Da Relação com o Saber, Bernard Charlot, 94 págs., Ed. Artmed.
Os
Jovens e o Saber,
Bernard Charlot (org.), 152 págs., Ed. Artmed.
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