O escrever
Roberto Cardoso de Oliveira – O
trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever.
O
trabalho de campo requer olhar e ouvir como atos cognitivos preliminares e
depois o escrever como produto final.
No
escrever a questão do conhecimento é
mais crítica.
Geertz
trata de duas etapas da investigação empírica:
- “estando lá”
(no campo): olhar e ouvir;
- “estando
aqui” (instituição universitária ou de pesquisa): escrever.
O escrever
“estando aqui” cumpre sua mais alta função cognitiva porque caracteriza o
processo de textualização dos fenômenos sócio-culturais. As condições de
textualização têm um papel muito importante nos processos de comunicação
inter-pares e de conhecimento propriamente dito. O comunicar e o conhecer têm
entre si uma relação dialética marcada pela linguagem. Cada disciplina tem seu
próprio idioma por meio do qual seus adeptos pensam e comunicam-se.
A
textualização da cultura é um empreendimento muito complexo. Geertz afirma que
toda etnografia é tecnicamente difícil porque é um trabalho “moral, política e
epistemologicamente delicado”.
Considerando
que o pesquisador tem autonomia, em que isso implica na conversão dos dados
observados em discurso da disciplina? É importante lembrar que a interpretação
é balizada pelos conceitos básicos da disciplina. No entanto, a autonomia do
pesquisador não se desvincula dos dados e a comunidade profissional tem um
controle sobre eles. O sistema conceitual da área e os dados têm entre si uma
relação dialética.
Ao nos
aproximarmos um pouco mais do processo de textualização podemos perguntar o que
ocorre com a realidade observada no campo quando a levamos para fora. Essa
pergunta é constante e marca a antropologia pós-moderna. Embora tal movimento
dentro da antropologia seja responsável por muitos equívocos tem o mérito de
trazer o texto etnográfico como tema de reflexão sistemática e não como algo
tomado tacitamente.
A questão
central do texto etnográfico é a articulação que busca entre o trabalho de
campo e a construção do texto. Marcus e Cushman consideram que a etnografia
poderia ser definida como “a representação do trabalho de campo em textos”.
Esta idéia apresenta alguns pontos críticos relacionados à complexidade de se
escrever um texto controlável pelo leitor e que não seja meramente um texto literário.
Os textos do diário de campo e, consequentemente, os artigos e teses acadêmicos
são “versões escritas intermediárias”. A monografia, ou texto final, deve
atender, esta sim, a exigências específicas.
Pode-se fazer
uma distinção entre:
·
Monografias clássicas: estrutura narrativa
normativa; disposição de capítulos quase canônica.
·
Monografias modernas: priorizam um tema através
do qual a sociedade ou cultura é descrita, analisada e interpretada.
·
Monografias experimentais: desprezo à
necessidade de controle dos dados etnográficos; intimistas.
Muitas
controvérsias se apresentam a partir do terceiro tipo de textualização
apresentado. O tom intimista marcado pelo uso da primeira pessoa do singular. A
importância de que o autor não se
“esconda” atrás do nós, mas fuja do estilo intimista. A responsabilidade do
antropólogo como autor do discurso ao mesmo tempo em que abre espaço para as
vozes de todos os atores do cenário etnográfico. A contribuição das monografias
experimentais ao promover a reflexão sobre o escrever como ação meta-teórica,
pouco presente na área.
Um bom texto
etnográfico é elaborado a partir de uma reflexão sobre suas condições de
produção a partir do olhar e do ouvir sem emaranhar-se na subjetividade do
autor/pesquisador. O que se apresenta e deve ser considerada é a
intersubjetividade de caráter epistêmico que articula as membros da comunidade
profissional no mesmo horizonte teórico.
O olhar e o
ouvir constituem nossa percepção da realidade na pesquisa empírica. O escrever
é parte indissociável de nosso pensamento; é simultâneo ao ato de pensar. É um
equívoco dissociar o pensar do escrever.
No que se
refere à antropologia, o olhar, o ouvir e o escrever estão sintonizados com o
mesmo sistema de ideias e valores próprios da disciplina. Dumont trata da
“ideia-valor”. Aproveitando esta contribuição podemos falar em duas
ideias-valor características do fazer do
antropólogo: a observação participante e a relativização.
Relativização
aqui entendida como atitude epistêmica, constituinte do conhecimento
antropológico, através da qual o pesquisador consegue escapar da ameaça do
etnocentrismo.
Há uma
continuidade do olhar e do ouvir no escrever marcado pela atitude relativista.
Considerando a
ideia-valor observação participante, o olhar e o ouvir são funções de um gênero
de participação peculiar à antropologia através da qual o pesquisador
interpreta a sociedade e a cultura do outro de uma perspectiva “de dentro”. Ao
escrever essa vivência tem uma função estratégica e é evocada na interpretação
do material etnográfico e na sua inscrição no discurso da disciplina. Os dados
ganham inteligibilidade sempre que rememorados pelo autor. A é o elemento mais
rico na redação de um texto; ocorre a “presentificação do passado”.
A experiência
antropológica e a disciplina condicionam as possibilidades de observação e de
textualização. O olhar, o ouvir e o escrever devem ser sempre tematizados,
questionados como etapas da constituição do conhecimento pela pesquisa
empírica. A reflexão aqui empreendida pode ser um estímulo a outras reflexões
de caráter interdisciplinar.
Marisa Oliveira Vicente dos
Santos
Olga L. Anglas R. Tarumoto
Paula M. Koizumi Masuyama
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