Antes de mais nada, convém reconhecer minha dificuldade quanto a
temática semiótica de Peirce, pois, sou
oriundo da ciência da computação e administração. A medida que recebia as pacientes
explicações do Prof. Mauro e contribuições dos demais colegas, as primeiras relações que estabeleci não foram com a ciência da computação ou administração,
ma sim, com a filosofia das artes marciais japonesas ou Budô, uma vez que as tenho
praticado desde a infância, entre as quais destaco especificamente o Karate. É
com base na filosofia do Karate que escrevi este primeiro comentário (evidentemente, sujeito a erros) a respeito
da análise fenomenológica do estado da "mente vazia" (termo utilizado
nas artes marciais para descrever o estado em que não se faz nenhuma projeção
mental do tipo "... se o adversário fizer isso, então, farei
aquilo...".), que entendo com sendo um signo semiótico, capaz de possibilitar ao Karate-Ka (praticante de
Karate) colocar-se em posição de combate e superar a tensão pré-combate.
É importante lembrar que o Karate é uma arte marcial estruturada
em um sistema de autodefesa (com e sem armas), desenvolvido por volta do século
XIII e XIV no antigo reino Ryu Kyu (atual distrito de Okinawa, Japão), como
parte do treinamento e do arsenal militar da guarda real. No entanto,
atualmente, muitas destas
características militares originais se perderam no tempo.
Para o aprendizado e prática do Karate, Nakayama (1983) e Gichin
Funakoshi (aluno e professor, respectivamente, idealizadores do Karate moderno),
destacam dois pontos. O primeiro refere-se ao elemento técnico, sobre o qual
julgam ser necessário dedicar grande empenho no aprendizado a ponto de torná-lo
um modelo de referência, a partir dos quais, outros elementos técnicos podem
ser expandidos. O segundo refere-se ao aprendizado pela experiência e não pela
teoria. Segundo Funakoshi (1998), não se pode aprender Karate somente por meio
das palavras (ou de teorias) e, sim, com o próprio corpo; com a prática. Tal
noção faz referência ao Zen Budismo que, ocasionalmente, é considerado como
sendo um modo de vida, mais do que uma doutrina espiritual (Gardini, 1998) e
também nos conduz a John Dewey (1959) com o aprendizado por meio da
experiência.
O Karate moderno encontra-se organizado de maneira sistematizada
para que o aprendizado seja gradual, em nível crescente de dificuldade, onde os
obstáculos possam ser superados um por vez, passando-se então a obstáculos de
outras naturezas. Este "Karate Moderno" (um novo signo) do qual
Nakayama se refere nada tem a ver com o "Antigo Karate" (signo
anterior) do reinado Ryu Kyu idealizado para matar ou causar sérios danos
físicos ao oponente. No entanto, os fundamentos e as técnicas são as mesmas.
Desta forma, o aprendizado enfatiza, inicialmente, os fundamentos
e as técnicas básicas (chamadas "Kihon") possibilitando o
desenvolvimento, aperfeiçoamento e domínio dos movimentos, observando a busca
pelo controle consciente da utilização dos músculos, considerando a sua
expansão e contração. Entretanto, este controle consciente necessita ser superado
e deve ter fim. Assim, quando aquele que aprende torna-se capaz de interpretar
a técnica, novos signos são criados.
No vídeo a seguir pode-se ver o professor Massao Kagawa expondo
os detalhes das técnicas básicas de chutes:
E neste outro vídeo, produzido pelo Discovery Channel, na
primeira parte pode-se observar o Professor Kiyohide Shinjo demonstrando
técnicas de controle, força e precisão (denominadas de
"Tameshiwari"):
Assim, após o domínio das técnicas passa-se ao aprendizado das
táticas e, em seguida, das estratégias (Tais táticas e estratégias são
codificadas em formas conhecidas como "Kata"), o que pode ser visto
neste vídeo do Professor Didier Lupo:
Nakayama explica que o principiante não sabe se posicionar para
o combate, pois, sua mente esta em constante conflito (em como articular o seu
pequeno arsenal técnico com a situação desconhecida e dinâmica do combate). Se
for atacado, ele pode até reagir, mas sem nenhuma estratégia. Desta forma,
quando tentar reagir ou golpear, pode vacilar e se atrapalhar, como pode ser
observado exemplo do vídeo a seguir:
A medida que aprende a usar as técnicas e as posturas ele passa
a conhecer e reconhecer as situações de combate e sua atenção é desviada por outros aspectos.Entretanto, com mais
treino ele passa a aplicar as técnicas e posturas sem que haja a necessidade de
um esforço consciente, retomando o estágio de principiante (de não saber o que
fazer conscientemente - a mente vazia), com desapego, livre de obstáculos e o
movimento apropriado para cada situação torna-se possível. Neste estágio, o
movimento ou reação apenas "flui" e "acontece". A figura 1
mostra o exato momento em que Francisco Filho, atleta brasileiro, primeiro
ocidental a vencer um campeonato mundial de Karate (sem divisão de pesos),
aplicando o golpe "Mawashi-geri" (chute semi-circular) em Andy Hug (vice-campeão
mundial e figura lendária nos esportes de combate), levando-o a knockout em 1991 ou nos termos
competitivos, aplicou um Ippon ou
Golpe perfeito, que tornou-se um ícone
(na semiótica) entre os praticantes da modalidade.
Figura 1 - Um ícone: Francisco Filho (Brasil) leva Andy Hug (Suiça) a knockout no mundial de
1991
Percebe-se, então, que o ato de lutar (chamado de
"Kumite") pode ser considerado um processo semiótico por envolver a
construção e interpretação de signos (processo de semiose), pois, trata-se de
um pensamento que envolve o signo, o seu objeto e seu interpretante. Este
processo ocorre durante todo o tempo da luta, sendo que cada Karate-Ka gera
significado ao interpretar a luta de acordo com o seu repertório técnico, com
seus objetivos e estratégias. Para melhor ilustrar, o vídeo a seguir mostra o
confronto completo entre Francisco Filho e Andy Hug, citado na Figura 1.
Aqueles que apreciam um confronto altamente técnico de Karate irão verificar os
elementos citados durante todo o texto e poderão visualizar a construção
dinâmica destes signos. Para os leigos, o momento exato capturado na Figura 1
ocorre aos 7:14m.
Com base neste último vídeo, pode-se fazer referência a Merrel
(2004, p.18-19), pois, ele explica que
Peirce oferece a possibilidade do pensamento triádico, como sendo, de fato,
não-linear, de modo que para cada par de opções sempre exista outra opção e
entre os pares de opções que ficam, outras opções sem fim. Para Merrel, isso
tem a ver com a concepção de Peirce das três categorias (Primeiridade,
Segundidade e Terceiridade) que explica como sendo, ao mesmo tempo, fácil
demais, mas talvez impossível demais. Fácil demais porque é tão simples quanto
começar do Zero e, em seguida, Um, Dois, Três e fim. E impossível demais porque
o Zero não quer dizer simplesmente "nada" (assim como o estado da
"mente vazia" citado no início deste texto); quer dizer também que a
partir do "nada" a possibilidade da emergência, da criação de tudo
que houve, que há e que deverá haver no universo inteiro.
Como Karate-Ka, entendo que o chute da Figura 1 não foi
planejado e simplesmente aconteceu, não sendo obra do acaso. Todos os elementos
anteriormente citados, como treinamento exaustivo, aprendizado por fases, em
diferentes níveis de dificuldades, fizeram com que, naquele exato momento, ele
(Francisco) pudesse criar este signo. Após a aprendizagem das habilidades
técnicas fundamentais, o Karate-Ka experiente avança para outros estágios da
prática e pode lutar. Isso compreende o aperfeiçoamento das noções de
distância, velocidade, táticas e estratégias. A prática da luta (Kumite) pode
ter início como método de aprendizagem. Neste contexto, obstáculos
anteriormente superados serão postos à prova e quanto menos a mente se ocupar
deles, mais rápido chegará a uma instância mais profunda, o que é chamado de
"sexto sentido do ataque e da defesa" (Nakayama, 1978). Tal concepção
só pode ocorrer com a libertação espontânea que o treinamento gradual possibilita
(o Zero definido no modelo triádico de Peirce). Como enfatiza Nakayama (1978):
Não importa como a pessoa executa as técnicas que praticou. Se sua mente
estiver apegada em como executar as técnicas, não conseguirá vencer. É
fundamental, no treinamento, que a mente não se fixe, quer nos movimentos do
adversário, quer no ato de golpear ou de bloquear. É necessário que sua mente
esteja no estado "Vazio".
Merrel (2004, p.30) aponta que o modelo triádico, na Figura 2,
resiste a distinção entre corpo e mente e sujeito e objeto, pois, abrange
interconexões de interdependência, inter-relacionada e interação entre corpo e
mente, como entidades unificadas, são corpomente,
o que quer dizer que há aprendizagem e conhecimento explícitos e tácitos que
misturam corpo e mente.
Figura 2 -
Modelo Triádico de Peirce
Fonte:
Merrel, 2004, p. 18
Assim, como ressalta Merrel (2004), o corpormente aprendeu a fazer o que faz sem a necessidade de
intervenção da mente; faz em níveis de conhecimento tácito em lugar de ser
focalizado pela mente ativa. É assim também que se faz na prática do Karate!
REFERÊNCIAS
BARREIRA, C. R. A. & MASSIMI, M. O Combate Subtrativo: A
Espiritualidade do Esvaziamento como Norte da Filosofia Corporal no Karate-Do.
Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(2). 2008. p.283-292.
FUNAKOSHI, G. Karate-do Nyumon: Texto introdutório do Mestre (E.
L. Calloni, Trad.). São Paulo, SP: Cultrix. (Original publicado em 1988). 1998.
GARDINI, W. Japon entre mitos y robots: el shinto. Buenos Aires,
Argentina: Sekai. 1998.
MERREL, F. A prática do pragmatismo: aprender vivendo, viver
aprendendo. In: TREVISAN, A. L.; ROSSATTO, N. D. (Orgs.). Filosofia
e educação: confluências. Santa Maria: Ed. FACOS/UFSM, 2004. p.
12-47.
NAKAYAMA, M. O melhor do karate 3: Kumite 1 (D. C. R. Delela
& S. N. Ferreira, Trads.). São Paulo,
SP: Cultrix. 1978.
NAKAYAMA, M.
Conversations. In R. G. Hassel. Conversations with de Master: Masatoshi
Nakayama. Philadelphia, PA: International Shotokan Karate Federation. 1983.
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