Um dos temas mais frequentes abordado na
literatura pedagógica se refere a relação teoria e prática. Isso porque desde
muito se vem discutindo fundamentos para que teoria e prática não sejam mais
tratadas como universos plenamente distintos, autônomos e hierárquicos.
A principal crítica veio endereçada ao
que se convencionou chamar de racionalidade
técnica (PEREZ-GOMES, 1995), um arauto da lógica dualista-instrumentalista
que, entre outras coisas, concebeu os professores como mero aplicadores de
técnicas desenvolvidas por especialistas. Segundo esta lógica, a teoria,
desenvolvida por especialista, deve meramente ser reproduzida ou aplicada por
professores, detentores de competências práticas ou didáticas.
Pintura de Corot, "A ponto de Nantes" |
Metaforicamente podemos pensar que os
professores são como pintores, entre uma paisagem descrita pela teoria, de um
lado, e uma tela, chamada prática, de outro. As pinturas desses professores
seriam, por assim dizer, o resultado de suas ações pedagógicas na prática. Do
ponto de vista da racionalidade técnica, os professores não passariam de pintores
realista. Pintores como o francês Camille Corot
manifestaram em suas pinturas a exaltação da realidade que se apresentavam a
eles, tratavam de reproduzir como em uma fotografia a paisagem colocada diante
de si. Seus quadros possuíam a reprodução desapaixonada e neutra do que se
oferecia à visão. O Realismo, na pintura, manteve-se dentro da tradição no que
diz respeito à exatidão do traço e ao perfeito desenho de seus modelos (fossem
paisagens ou personagens).
Assim também é o professor consolidado
pela racionalidade técnica, um ser em busca da reprodução fiel das "paisagens"
apresentadas nas teorias. Suas práticas devem espelhar a teoria com uma
precisão fotográfica ou um quadro realista. Para isto precisam ter uma técnica perspicaz
e um olhar aguçado para reproduzir a realidade circundante.
Esse modelo, por mais críticas que tenha
recebido no âmbito acadêmico ainda impera em muitas das políticas públicas de
educação, nos modelos de formação de professores e, por que não, no chão da
escola, na atuação de seus profissionais.
Pintura de Monet, "O lago com Ninfeias" |
O enfrentamento da questão foi realizado
por meio da propositura da figura do professor reflexivo, professor pesquisador
ou outros termos correlatos, que espelhariam uma racionalidade prática. Os
professores descritos nesta perspectiva, por sua vez, teriam o caráter de outra
escola de pintura. Estariam inclinados a conceber a relação teoria e prática de
forma mais próxima ao que fizeram os pintores impressionistas em suas telas. Os
impressionistas, como Claude Monet,
Edouard Manet
e Auguste
Renoir já não buscavam a exatidão do realismo. Sabiam eles que
a pintura (o produto de suas ações) não pode jamais ser a pura expressão da
objetividade de uma realidade externa (uma paisagem ou uma teoria). Assim, o
enfoque de suas pinceladas estava precisamente em capturar aquela impressão
primeira que a realidade forçava sobre suas subjetividades, de modo a produzir
na tela uma síntese entre o que capturavam de essencial da paisagem, sem
desconsiderar as qualidades da tela (sua textura, a possibilidade de refletir
todas as cores em seu fundo branco etc) e a própria experiência pessoal de
pintar (faziam questão de misturar as cores que traziam em sua bagagem para
fundi-las na tela, produzindo deste modo tons muito pessoais para retratar a
paisagem). Assim, as pinturas impressionistas não revelam um retrato da
realidade, ou uma realidade externa ou alheia ao pintor e sua conjuntura. Se
tratava de pinturas que exprimiam uma síntese pessoal da forma como aqueles
pintores percebiam a realidade em conexão com a tela e sua própria
subjetividade.
Por isso, a arte impressionista revela
não a realidade tal qual ele é, mas a realidade tal como ela se manifesta a nós,
mediada pelas sensações (ou impressões), pelo subjetivo que haveria em cada
artista, não sendo de forma alguma mera expressão da realidade exterior, mas a
realidade sintetizada por nossas capacidade perceptiva de se confrontar com o
mundo.
O professor reflexivo, tal qual essa
metáfora, não desejaria, assim, reproduzir a teoria plenamente em suas
práticas. Isto seria impossível, dado o dinamismo presente nas práticas
pedagógicas em seus contextos concretos. Da teoria, esses professores
extrairiam os principais traços, as principais cores, a essência manifesta em
sua forma, as principais "impressões" (metaforicamente falando), para
recriá-las de forma autoral em sua prática pedagógica, tendo em vista um diálogo
permanente com os traços presentes na escola - dai a necessidade de constante
reflexão e pesquisa, dado que essa realidade é sempre dinâmica e nunca estática
como as paisagens das teorias.
A obra pedagógica de um professor reflexivo,
ou professor pesquisador, deve ser a síntese daquilo que ele capturou de
essencial da teoria, somado aos conhecimentos já constituídos em sua
experiência e a imprevisibilidade do chão da escola. A obra pedagógica aqui é sempre profundamente
autoral. Não por acaso, o trabalho do professor reflexivo foi comparado ao de
um artesão, que, apesar de ter algum modelo teórico em mente, atribui contornos
próprios a cada obra, por entender que as qualidades que emanam da matéria
prima de suas obras definem-nas tanto quanto ou mais do que qualquer modelo a
priori da peça de arte.
Mas, afinal, o que tudo isso tem haver
com Semiótica? A Semiótica é uma ciência ou lógica geral dos signos, destinada
a investigar os signos em interação, inter-relação, em fluxo, para desvelar
como uma "coisa" ou algo se interconecta
a uma cadeia associativa infinitesimal de significações. O signo para
Peirce (1975), não é senão algo que, sob certos aspectos ou de algum modo, representa
alguma coisa para alguém. Sendo assim, não seria plausível, considerar a
problemática da relação teoria e prática também de um ponto de vista semiótico,
concebendo as teorias pedagógicas como signos que nos colocam em interconexão
com os pensamentos e intenções de outros autores? Sendo signos, por sua vez, tais
teorias só podem representar tais pensamentos e intenções sob certos aspectos,
nunca em sua totalidade. Daí que um dos fundamentos mais centrais para
desvendar os limites da racionalidade técnica em seus intentos de se constituir
como viseira para as práticas pedagógicas, desconsiderando a realidade concreta
das escolas, dos alunos e dos professores, reside precisamente em seu
fundamento semiótico, ou melhor em seus limites de significação - ignorados por
aqueles que professam tal perspectiva de relação teoria e prática.
É precisamente essa consciência dos
limites de significação de toda teoria pedagógica que funda a noção de um
professor reflexivo. É este sujeito, por sua vez, quem deve significar as
teorias em suas práticas concretas, por meio da reflexão e da pesquisa,
buscando nesse processo confeccionar práticas pedagógicas, que por sua vez,
também são signos das teorias pedagógicas que subjazem suas ações - sejam elas
oriundas de especialistas ou da experiência pessoal e profissional que
carregam.
Contudo, mesmo aqueles que sustentam uma
proposição fundada na reflexão sobre a
prática, pouco tem observado os processos de significação que os
professores fazem das teorias pedagógicas e/ou mesmo de suas práticas
pedagógicas. Aqui reside um hiato ainda pouco explorado por tais autores, ou
mesmo na literatura em Educação, de modo geral. Não seria a hora de nos
aprofundarmos um pouco mais nos processos de significação presente nas relações
teoria e prática em contextos concretos de atuação docente? Aqui temos mais uma
porta de entrada em que a semiótica peirceana poderia contribuir para
desenvolver novos olhares sob este terreno aparentemente já "muito
conhecido".
PEIRCE, C.S. Semiótica e Filosofia.
São Paulo: Cultrix, 1975
PÉREZ GOMES, A. O Pensamento Prático do Professor: A formação do
professor como profissional reflexivo. In: NÓVOA, A. (Coord.). Os Professores e sua Formação. 2ª ed.
Lisboa: D. Quixote, 1995. p. 93-114.
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