O pesquisador francês investiga na prática como os alunos se relacionam com o saber
Revista Nova Escola -
Edicão 223 – Junho 2009
Texto disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/formacao-inicial/bernard-charlot-ensinar-significado-mobilizar-alunos-476454.shtml?page=0
Tatiana
Pinheiro
Bernard Charlot
Foto: Arquivo pessoal de Tatiana Pinheiro
Foto: Arquivo pessoal de Tatiana Pinheiro
Há 40 anos, vertentes da Sociologia analisam a
relação entre o desempenho escolar de uma criança e a classe social que seus
pais ocupam. Boa parte das considerações aponta que alunos de camadas populares
têm menos chances de ser bem-sucedidos nos estudos do que os jovens de classe
média. Mas como explicar um estudante de família desfavorecida que se sai bem
na escola? E o aluno de família abastada que fracassa em sua trajetória
escolar?
Pesquisador francês radicado no Brasil, Bernard
Charlot (leia a biografia no quadro abaixo) se voltou para essas
questões na década de 1980, ainda em Paris, e trabalhou em um conceito que
explica de maneira mais abrangente e menos preconceituosa histórias de sucesso
e de fracasso escolar: a relação com o saber (leia mais no último quadro).
Essa é
uma condição que se estabelece desde o nascimento, uma vez que "nascer
significa ver-se submetido à obrigação de aprender", escreveu Charlot. A
condição humana exige que seja feito um movimento, "longo, complexo e
nunca acabado", no sentido de se apropriar (parcialmente) de um mundo
preexistente. Essa apropriação obrigatória desencadeia três processos: de
hominização (tornar-se homem), singularização (tornar-se exemplar único) e
socialização (tornar-se membro de uma comunidade).
O ato de construir-se e ser construído pelos outros
é a própria Educação, entendida de forma ampla, em situações que ocorrem dentro
e fora da escola. É por meio de suas experiências que a criança toma contato
com as muitas maneiras de aprender. Ela pode adquirir um saber específico, no
sentido de compreender um conteúdo intelectual (a gramática, a Matemática, a
história da arte etc.), pode dominar um objeto ou uma atividade (como caminhar,
amarrar os sapatos, nadar etc.) e pode aprender formas de se relacionar com os
outros no mundo (saber como cumprimentar as pessoas, ter boas maneiras à mesa
etc.).
Nesse ir-e-vir da relação com o mundo, com os
outros e consigo mesmo, toma forma o desejo de aprender. É esse desejo que
propulsiona a criança em direção ao saber. Em pesquisas de campo, Charlot e sua
equipe identificaram que esse "direcionar-se para o saber" pressupõe
um movimento de mobilização - e não simplesmente de motivação. "O conceito
de mobilização se refere à dinâmica interna, traz a ideia de movimento e tem a
ver com a trama dos sentidos que o aluno vai dando às suas ações", explica
Jaime Giolo, professor titular da pós-graduação em Educação da Universidade de
Passo Fundo (UPF) e estudioso do pensamento de Charlot. "A motivação, por
sua vez, tem a ver com uma ação externa, enfatizando o fato de que se é
motivado por alguém ou algo."
Ensinar
com significado para mobilizar os estudantes
Como
acionar nos alunos mecanismos de interesse pelo saber? Como notar que relação
os estudantes estabelecem com o saber escolar? Segundo contou o próprio Charlot
em entrevista a NOVA ESCOLA de Aracaju, cidade onde mora atualmente, suas
pesquisas ainda devem uma resposta mais completa para essas perguntas,
principalmente quando o olhar se volta para alunos de periferias - na França,
na Tunísia, na República Tcheca ou no Brasil, países em que ele coordenou
estudos. O que se sabe é que, quanto mais significativo for o que está sendo
ensinado, mais o aluno se põe em movimento, se mobiliza para se relacionar com
aquele conteúdo. Mas essa situação, que seria a ideal, não é a predominante.
Os
estudos de Charlot apontam que a maioria dos estudantes - quase 80% deles - só
vê sentido em ir à escola para conseguir um diploma, ter um bom emprego e
ganhar dinheiro e levar uma vida tranquila. Nesse discurso, não há a menção ao
fato de aprender. "Esses jovens que ligam escola e profissão sem
referência ao saber estabelecem uma relação mágica com ambos. Além disso, sua
relação cotidiana com o estudo é particularmente frágil na medida em que aquilo
que se tenta ensinar a eles não faz sentido em si mesmo, mas somente em um
futuro distante", define o pesquisador.
No caso desses estudantes, o professor Jaime Giolo
avalia que se estabelece uma relação mecânica, quase de indiferença, com o
saber. Recuperar o sentido do aprender e o prazer em estudar está entre os
desafios de hoje. A atividade escolar precisa se apresentar de forma
significativa, prazerosa, para merecer o esforço intelectual dos alunos no
sentido de se apropriar de diversas porções de saberes produzidos pela
humanidade.
Não há uma receita pronta para isso. O que não
basta para Charlot é dar a situação por resolvida ao justificar o desinteresse
ou o fracasso de alunos por causa da classe social da família ou das carências
culturais inerentes à origem deles. Segundo o francês, pensar de maneira
determinista lança uma leitura negativa sobre a realidade. Em vez disso, ele
sugere uma leitura positiva do indivíduo, levando em conta sua história de
vida, seus desejos e suas atividades cotidianas.
Biografia
De Paris
a Aracaju, atrás de pistas sobre o ensino
Bernard Jean Jacques Charlot nasceu em Paris, em
1944. Formou-se em Filosofia em 1967 e, dois anos depois, foi lecionar Ciências
da Educação na Universidade de Túnis, na Tunísia. De volta à França, em 1973,
trabalhou por 14 anos na Ecole Normale, um instituto de formação de docentes.
No período de 1987 a 2003, atuou como professor catedrático da Universidade de
Paris 8, onde fundou a equipe de pesquisa Escol (Educação, Socialização e
Comunidades Locais), voltada para a elaboração dos elementos básicos da teoria
da relação com o saber. Após se aposentar, veio para o Brasil. Como
professor-visitante da Universidade Federal de Mato Grosso, seguiu fazendo
pesquisas até ser convidado para ser visitante na Universidade Federal de
Sergipe, em Aracaju. Desde 2006, é lá que coordena o grupo de pesquisas
Educação e Contemporaneidade, engajado em delinear as relações com os saberes e
explicitar de que forma os alunos se apropriam deles.
Os
caminhos de Charlot
Um passo
adiante na Sociologia da reprodução
O estudo da relação do homem com o saber não é
novidade. Com outras denominações, Bernard Charlot vê o assunto atravessar a
história da Filosofia clássica, desde Sócrates (469-399 a.c), que disse
"conhece-te a ti mesmo", passando por René Descartes (1596-1650) e a
formulação da dúvida metódica, até chegar em Hegel (1770-1831) e sua visão de
que novos conhecimentos se constroem com base em antigos.
Porém é nas décadas de 1960 e 70 que a expressão
"relação com o saber" e outras derivadas podem ser encontradas em
maior quantidade nas produções de psicanalistas e sociólogos. Em 1970, por
exemplo, Pierre Bourdieu (1930-2002) e Jean Claude Passeron usaram no livro
A Reprodução termos como "relação com a linguagem" e
"relação com a cultura".
Mas é Charlot que faz um novo recorte e se volta
para o saber nas classes populares. Ele sai do discurso mais teórico para
encontrar elementos de compreensão da trajetória escolar de crianças de
periferia. Nessa proposta, o sujeito, com seus desejos, ganha importância.
Charlot assume para si o pressuposto de que os indivíduos não são simples
objetos de pesquisa, mas agentes capazes de subverter a lógica dominante, mesmo
que o façam localmente e com o simples intuito de melhorar um pouco o modo de
vida.
Quer
saber mais?
BIBLIOGRAFIA
A
Mistificação Pedagógica - Realidades Sociais e Processos Ideológicos na Teoria
da Educação, Bernard
Charlot, 314 págs., Ed. Zahar.
Da
Relação com o Saber - Elementos para uma Teoria, Bernard Charlot, 96 págs., Ed.
Artmed.
Os Jovens
e o Saber - Perspectivas Mundiais, Bernard Charlot, 152 págs., Ed. Artmed.
Relação
com o Saber, Formação dos Professores e Globalização - Questões para a Educação
Hoje, Bernard
Charlot, 160 págs., Ed. Artmed.
Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/formacao/formacao-inicial/bernard-charlot-ensinar-significado-mobilizar-alunos-476454.shtml?page=0
Publicado
em NOVA ESCOLA Edição 223, Junho 2009.
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