sábado, 3 de novembro de 2012


Muito interessante esta entrevista com Bernard Charlot, aqui está somente um trecho:


Desafios da educação na contemporaneidade:
reflexões de um pesquisador* - Entrevista com Bernard
Charlot
Entrevista concedida a
Teresa Cristina Rego
Lucia Emilia Nuevo Barreto Bruno
Universidade de São Paulo
(Publicado no site da scielo)
Em entrevista concedida à revista Educação e Pesquisa em julho de 2009, o francês Bernard Charlot, radicado no Brasil desde o início dos anos 2000, reflete sobre sua formação acadêmica, sua trajetória intelectual e, principalmente, sobre alguns problemas relevantes da educação atual (da escola básica e do ensino superior). Conhecido por seus importantes estudos sobre a compreensão da relação que as pessoas mantêm com o saber, Charlot demonstra neste texto seu grande compromisso com a prática educativa e com a atividade de pesquisa. Nascido em 1944 em Paris, Charlot é graduado em Filosofia e doutor pela Universidade de Paris 10. Sua experiência como docente é significativa: foi professor da Universidade de Túnis, na Tunísia, e devolta à França, da École Normale (Instituto de Formação de Professores), em Le Mans, e da Universidade Paris 8. Nessa instituição, onde atuou por 16 anos, idealizou e fundou a ESCOL (Educação, Socialização e Comunidades Locais), equipe de pesquisa de grande projeção internacional, voltada à investigaçãodas relações com os saberes (especialmente com o objetivo de esclarecer de que forma os alunos de diferentes classes sociais se apropriam deles) e de outros temas cruciais relacionados à educação como violência na escola, territorialização das políticas educacionais e globalização. No Brasil, Charlot já trabalhou como professor-visitante na Universidade Federal de Mato Grosso. Desde 2006, é professor visitante na Universidade Federal de Sergipe. Atualmente é também professor afiliado da Universidade do Porto (Portugal). É autor de uma série de livros, entre os quais: A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979; Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. Bruno Magne. Porto Alegre: Artmed, 2000; Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Trad. Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2001;  Relação com o saber, formação dos professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005; e Jovens de Sergipe: como são eles, como vivem, o que pensam. Aracaju: Governo de Sergipe, 2006

Conte-nos um pouco de sua história de vida, sua infância e suas origens familiares.
  Nasci em 15 de setembro de 1944, que era o dia do início do ano letivo na França, o que já é simbólico. Meus pais tiveram três filhos e uma filha. Sou o segundo filho. Nós morávamos em Paris, cidade em que meus pais nasceram. O meu pai nunca terminou o ensino primário. Foi operário em vários setores: pintura de prédios, asfalto das ruas etc. Foi prisioneiro na Alemanha e fugiu depois de dois anos. Depois da guerra, entrou na polícia porque ela dava prioridade de emprego aos prisioneiros que haviam escapado. Sociologicamente sou dessa família que passa da camada operária para a da pequena classe média, com uma mãe que foi boa aluna e que acabou levando todos os filhos para cima. Por ser boa aluna, ela terminou a escola cedo, com doze anos, e ao invés de ir trabalhar numa fábrica, entrou num escritório. Não foi fácil para ela na época da guerra com um filho que acabara de nascer. Ela teve de cuidar dos filhos e continuar a trabalhar. Foi uma vida difícil. A minha mãe teve um papel preponderante na minha formação. A alta expectativa depositada no projeto escolar era mais dirigida a mim porque eu era considerado “o intelectual da família”. No entanto, o meu irmão mais velho entrou no comércio e agora ele é que é rico. O terceiro filho se tornou fisioterapeuta. E a minha irmã, embora não tenha prosseguido seus estudos nem ficado rica, tem uma vida boa. Num de seus artigos, você afirma preferir a ‘crise’ de uma escola democratizada à paz de uma escola elitista. Considerando o que você acaba de dizer e tendo em vista as diversas dificuldades e os múltiplos problemas enfrentados hoje pela escola, o que você sugere para os educadores e pesquisadores quanto à forma de enfrentá-los? Decerto, não podemos dar receitas, isto é, modos de fazer que sempre funcionam, qualquer que seja o contexto. Mas podemos e devemos oferecer técnicas de trabalho. Senão, explicamos uma pedagogia ideal para o professor “normal”, que tem alunos “normais”, em
condições de trabalho que muitas vezes nem são normais e culpamos o professor, o que o leva a pensar que é incapaz, que não sabe como enfrentar suas dificuldades. Devemos trabalhar com os professores “normais” e, desse ponto de vista, desconfio dos discursos sobre a escola ideal. Há exemplos de escolas, como a Escola da Ponte, de Portugal, que impressionam muito. Claro que essa escola é muito interessante, fora da norma, mas esse é o problema: ela está fora da norma. Entre os professores muito emocionados por esse exemplo, quantos por cento querem entrar numa aventura dessas? E qual a função real desses exemplos heróicos? Ao dá-los, dizemos aos professores que se pode mudar a escola brasileira agora. É verdade, mas, para tanto, tem que ter heróis. No Brasil, há cerca de 1.800.000 professores. Não são 1.800.000 heróis. São trabalhadores que querem fazer um bom trabalho e não podemos exigir que sejam todos santos, militantes, heróis. No Brasil, nós – digo nós porque vivo aqui agora e compartilho suas preocupações e alegrias – devemos trabalhar mais com a realidade da escola brasileira e não com o que deve ser uma escola
ideal. Esse distanciamento entre as questões teóricas e aquilo que a realidade suscita é um problema quase crônico na educação – e nãoEducação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. especial, p. 147-161, 2010 151
só no Brasil. Mas a especificidade deste país é que ele deve resolver todos os problemas ao mesmo tempo e em pouco tempo. A França e outros países da Europa tiveram um século para a constituição da escola primária e tiveram 20 anos para construir a segunda parte do ensino fundamental.  No Brasil, temos que fazer tudo ao mesmo tempo: terminar o ensino fundamental, que foi estatisticamente resolvido, mas que sabemos que ainda tem problemas; temos que resolver o problema do Ensino Médio, que é o mais grave neste momento, porque não foi suficientemente ampliado, constituindo um gargalo entre o ensino fundamental e o ensino superior. Além disso, é necessário organizar uma universidade para a globalização.   Aqui há escolas dos séculos XXI, XX e XIX. Às vezes, num mesmo bairro! Isso significa que o discurso fora da realidade tem consequências mais graves no Brasil do que na França, já que lá a distância entre a
realidade e o discurso é menor do que aqui. Não é culpa de ninguém – aliás, não gosto do discurso da culpa – mas temos de resolver esses problemas.




Você foi um dos primeiros autores no campo da educação a chamar a atenção para a relação que os sujeitos, em particular os estudantes mais pobres, estabelecem com o saber, com aquilo
que é ensinado na escola. Você acha que esse tema ainda precisa ser mais bem compreendido? Quais novas perguntas essa temática enseja?
Vou tentar responder da forma mais simples possível. Só aprende quem estuda, quem tem uma atividade intelectual. Mas só faço um esforço intelectual se a atividade tem sentido para mim e me traz uma forma de
prazer. Portanto, a questão da atividade, do sentido e do prazer é central. Ir à escola, estudar (ou recusar-se a estudar), aprender e compreender, seja na escola seja em outros lugares: qual sentido isso tem para os jovens, em particular nos meios populares? Em outras palavras: qual a relação dos alunos com a escola e com o saber? Essa abordagem, essa forma de questionar, implica uma ruptura com muitos questionamentos anteriores e isso é o que importa, antes de tudo. Mas é preciso ter cuidado: relação com o saber não é uma resposta, é uma forma de perguntar. Na França, já ouvi professores dizendo: ele fracassa porque não tem relação com o saber. É um erro: cada um tem uma relação com o saber, inclusive quando não gosta de estudar. É, ainda, uma catástrofe ideológica, uma vez que, ao dizer que alguém não tem uma relação com o saber, reintroduz-se a análise em termos de “carências”, justamente aquela que a noção de relação com o saber permite afastar. O problema não é dizer se a relação do aluno com o saber é “boa” ou não, mas, sim, entender as contradições que o aluno enfrenta na escola. Ele vive fora da escola formas de aprender que são muito diferentes daquelas que o êxito escolar requer. Essas contradições é que se deve tentar entender. Por isso, insisto muito sobre a heterogeneidade das formas de aprender. Há coisas que só se pode aprender na escola e, portanto, não se deve menosprezar esta instituição. Mas também se aprendem muitas coisas
importantes fora da escola. Hoje, embaso essa ideia de heterogeneidade das formas de aprender numa análise antropológica. O ser humano nasce incompleto, como explicam autores tão diferentes quanto Kant,
Marx, Vygotsky ou Lacan. Mas ele nasce em um mundo humano, que lhe proporciona um patrimônio. Ao se apropriar desse patrimônio, pela educação, a cria do homem torna-se humana. Em outras palavras, o que caracteriza o ser humano não fica dentro de cada indivíduo. Como escreveu Marx na VIa Tese sobre Feuerbach, a essência do ser humano é o conjunto das relações sociais. Ampliando a ideia, pode-se considerar que a essência do ser humano é tudo o que a espécie humana criou no decorrer de sua história. Portanto, a educação é um processo de humanização, socialização e subjetivação. Na psicologia, isso leva a
uma perspectiva histórico-cultural. Na sociologia, isso leva a reavaliar a questão do sujeito, que a sociologia deixou de lado para se constituir. Na pesquisa em educação, devemos considerar o aluno como ser humano
indissociavelmente social e singular– e talvez essa seja a especificidade da disciplina Educação.

Keila








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