A partir da discussão sobre o livro-tese “O jogo da cultura e a cultura
do jogo: por uma semiótica da corporeidade”, de Pierre Normando Gomes-da-Silva (2011),
houve certo aprofundamento da compreensão da noção de relações triádicas no pensamento de Charles Sanders Peirce. Conforme
o autor, as relações triádicas no
processo de semiose podem ser subdividas em:
-relações
triádicas de comparação (participam da natureza das possibilidades);
-relações
triádicas de desempenho (participam da natureza dos fatos);
-relações
triádicas de pensamento (participam da
natureza das leis).
Contudo, nessas relações há
distinção entre 3 correlatos:
1º, de
natureza mais simples, considerado mera possibilidade;
2º, de
complexidade intermediária, que se dá pela existência concreta;
3º, de
natureza mais complexa, manifesto por leis ou tipo geral.
Essas
relações triádicas, de acordo com os correlatos, dividem-se em tricotomias.
Níveis
|
Caracte-rísticas
|
Campo
|
Tipos de análise
|
Si mesmo
|
Objeto
|
Interpre-tante
|
Primei-ridade
|
Qualidade
|
Do possível
|
Sintático
|
Quali-signo
|
Ícone/ hipoícone: imagem/ diagrama/
metáfora
|
Rema
|
Secundi-dade
|
Ação/
Reação
|
Do existente
|
Semântico
|
Sin-signo
|
Índice
|
Dicente
|
Terceiri-dade
|
Genera-lização
|
Da lei
|
Pragmá-tico
|
Legi-signo
|
Símbolo
|
Argumen-to
|
Fonte: quadro da pág.256.
Porém, há outras relações triádicas, que são detalhadas nas dez
tricotomias propostas por Peirce (de fato, Peirce apresenta maior detalhamento das
tricotomias I, IV e IX):
I-relação
do signo consigo mesmo (quali, sin, legi-signos);
II-modo
de apresentação do objeto imediato (descritivo, designativo, copulante);
III-modo
de ser do objeto imediato (abstrativo, concretivo, coletivo);
IV-relação
do signo com o objeto dinâmico (ícone, índice, símbolo);
V-modo de apresentação do
interpretante imediato;
VI-modo
de ser do interpretante dinâmico;
VII-relação
do signo com o interpretante dinâmico;
VIII-natureza
do interpretante final;
IX-relação
do signo com o interpretante final (rema, dicente, argumento);
X-relação
do signo com seu objeto e o interpretante.
Acerca
das três tricotomias mais detalhadas, na I a relação do signo com o próprio signo
implica na interrelação entre quali-signo,
sin-signo e legi-signo, na qual o quali-signo é um signo ainda não
corporificado ou realizado. Por sua vez, o sin-signo é um acontecimento real e
envolve quali-signos e o legi-signo é uma lei que é um signo convencional
(significante que ganha significado por meio de sua aplicação –
réplica/sin-signo).
Como exemplos
o autor aponta:
-quali-signo
ou poti-signo: “faça o que digo, mas não faça o que faço”;
-sin-signo
ou acti-signo: signo experimentado aqui e agora, unicamente,
irrepetível, e.g. “cada rosto”;
-legi-signo
ou “signo familiar”, e.g., “Cuidado! Nesse lugar há travessia de crianças
brincando”.
Acerca
da IV, a relação com o objeto dinâmico implica na interrelação entre Ícone, índice e símbolo, na qual o ícone
faz ver o objeto por força de caracteres próprios ou por semelhança. Nesse
sentido, há hipoícones divididos em: imagens, diagramas e metáforas. Já o
índice indica o objeto em razão de ser afetado por ele e o símbolo representa o
objeto por força da lei.
São
apontados como exemplos:
-ícone
por meio de imagens, diagramas e metáforas: respectivamente, letra “V”, estalar
os dedos e aperto de mão;
-andar
cambaleante como indício de embriaguez;
-mão em
figa para exemplificar o símbolo.
Finalmente,
na IX há a relação com o interpretante final, que implica na interrelação entre rema, dicente e argumento.
Nessa relação, o rema é uma conjectura, uma hipótese interpretativa. Não
obstante, o dicente ou “deci-signo” é um signo de existência concreta
que oferece base para sua interpretação, ao passo que o argumento é signo de
lei, que representa seu objeto em caráter de signo, juízo e assevera uma
proposição.
São tidos como exemplos:
-para o
rema, uma garota saltando pode ter a forma de um salto coreográfico de uma
bailarina;
-para o
dicente, ao apontar o estado emocional por meio da comunicação facial;
-para o
argumento, e.g., o envolvimento do m. orbicularis oculi ao definir um
sorriso genuíno.
Estrutura sígnica
|
Tricoto-mia
|
Primeiridade
|
Secundidade
|
Terceiridade
|
REPRESENTAMEN
|
I
|
Quali-signo
|
Sin-signo
|
Legi-signo
|
OBJETO imediato
dinâmico
|
II
III
IV
|
Descritivo
Abstrativo
Ícone
|
Designativo
Concretivo
Índice
|
Distributivo
Coletivo
Símbolo
|
INTERPRETANTE imed.
dinâmico:
emocional, energético, lógico
final
|
V
VI
VII
VIII
IX
|
Hipotético
Simpático
Sugestivo
Gratificante
Rema:
|
Categórico
Percussivo
Imperativo
Prático
Dicente:
|
Relativo
Usual
Significativo
Pragmático
Argumento
|
|
|
Quali-signo icônico; Sin-signo icônico; Sin-signo indicial;
Legi-signo icônico; Legi-signo indicial; Legi-signo simbólico
|
Sin-signo indicial; Legi-signo indicial; Legi-signo simbólico
|
|
Fonte: quadro da pág.264
Com intenção de elucidar eventuais
aplicações no campo da Educação Física, mais especificamente no estudo da semiótica
do jogo motor, o autor aponta que a
semiótica na investigação do “jogo motor” consiste em desvelar o arranjo criado
pela sucessão dos gestos na atividade lúdica. Entende-se, nessa perspectiva, que
os feixes de ações e inações corporais tanto configuram a fisionomia do jogo,
sua natureza peculiar ou cultura própria.
A “cultura
do jogo” é tida, assim, como uma construção social, provida de sentido e
significado. Ela é organizada pela interação dos sucessivos gestos vividos no
espaço e no tempo de uma situação lúdica.
Por sua
vez, a situação lúdica é o contexto criado pelos jogadores ao jogarem e, em
decorrência, entender a cultura do jogo significa decifrar a lógica ou o
sistema de significação que orienta a conduta dos sujeitos que brincam.
Em síntese, o autor conclui sua argumentação com alguns
exemplos de jogos. Afirma que os jogos de “azar” seriam os jogos humanos
por excelência (conforme Caillois) e jogos infantis seriam os primeiros no
desenvolvimento humano (conforme Piaget). Nessa alegoria, pormenoriza três “cenas”
de situações do jogo de roleta e três observações de situações de jogo
infantil.
Para
contextualizar a pergunta central do autor, concluirei este comentário com
outro exemplo de jogo, no caso o xadrez:
A pergunta do autor é “Qual é a tendência dos gestos na
cultura do jogo?”. E ele faz referência à tendencialidade da composição dos
gestos no jogo, bem como indica que há busca por um tipo geral de legi-signo,
que governaria “réplicas singulares”.
Para o autor, já a semelhança entre o jogo particular e sua configuração geral
é um ícone, do tipo rema, porque é o interpretante final.
Pois bem, no caso do xadrez cada
posição é particularmente irredutível em sua significação, porém há três
momentos importantes:
-no início há que se optar entre
as inúmeras possibilidades e, a partir da escolha feita, os lances seguintes e as
combinações que se derem têm infinitas possibilidades. Tanto isto ocorre que
não há “lance errado” no 1º movimento do jogo. Contudo, há preferências entre
os jogadores e são elas que os mobilizam para suas escolhas. Nesse sentido, as preferências
mais comuns são as formas de abertura que caracterizam o jogo: aberto, semiaberto,
fechado, irregular ou hipermoderno. Note-se que as primeiras são documentadas há
mais de 500 anos e as mais “modernas” ou recentes já têm registros com quase 200
anos. Curiosamente, por exemplo, um ser humano é geralmente mais eficaz que um
computador neste momento do jogo, independente da potência do mecanismo
artificial.
-no meio do jogo há uma
planificação dinâmica e posicional, que toma a forma de uma interpretação
constante da situação que se apresenta a cada lance do jogo. O único critério
que se manifesta nesse momento que é concomitantemente tanto de planificação quanto
de ação é a imanência do real, daquilo que inegavelmente está contido nas próprias
condições atuais do jogo e suas implicações igualmente inegáveis para sua
sequência. Esse é o espaço da manifestação criativa, justificada por uma
objetividade que é orientada senão pela subjetividade que o jogador tem em si em
todo o processo decisório, lidando tanto com as limitações posicionais e
materiais, quanto com as possibilidades interativas que vislumbra.
-no momento final, as reduções
materiais podem ou não ocorrer, embora geralmente ocorram, mas é o “estado
final” das coisas que resta e este resultado é invariavelmente único. Uma posição
final é irrepetível justamente pela infinitude de elementos que interagem entre
si e que culminam com sua ocorrência. E, é justamente nesse sentido de infinitude, que há uma propriedade
latente nas tricotomias para as limitações tecnológicas à época de Peirce (e
que demandaram seu esforço para afirmar que são infinitas, entretanto somente detalhá-las
e demonstrá-las em dez), mas que se concretizou operacionalmente com a
tecnologia disponível na segunda metade do século XX. Pode-se afirmar que as
tricotomias no processo de semiose são tão infinitas quanto o é um fractal,
pois a infinitude é justamente sua característica primeira. Como exemplo “final”
segue a indicação do fractal de Benoît Mandelbrot para apreciação estética, mas
o mesmo se daria com quaisquer posições nos conjuntos de Julia-Fatou, Cantor ou
outros. O link é http://www.youtube.com/watch?v=G_GBwuYuOOs
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