Lembrando-me do
primeiro dia de aula, em que falávamos acerca das perspectivas antropológica,
fenomenológica e semiótica e suas principais contribuições no que compete ao entrelaçamento
entre os conceitos de sujeito, cultura, linguagem e aprendizagem; achei por bem
indicar um filme que há muito assisti e que, em virtude das discussões
levantadas em disciplina, concluí ser pertinente à reflexão sobre alguns
conceitos com os quais trabalhamos.
O filme “O Enigma de
Kaspar Hauser”, do diretor alemão Werner Herzog, conta a história de um menino
criado em um cativeiro que até a juventude não havia tido nenhum contato com
qualquer ser humano ou qualquer experiência com a cultura. A existência de Kaspar
Hauser é descoberta em 1828 na cidade de Nuremberg. A personagem desconhece a
existência de outras pessoas, o significado dos objetos e a fala, até que um tutor
decide responsabilizar-se por sua socialização. O filme, no geral, representa a
luta da personagem no que compete à aquisição das primeiras experiências de
vida, da fala, da representação do pensamento, de sua elaboração; enfim, da
aquisição da cultura. Talvez a
expectativa do enredo seja exatamente essa, o momento em que Kaspar Hauser se
torne civilizado, faça parte de uma cultura e tenha pleno domínio da linguagem,
da produção dos signos e do saber.
O filme me parece
interessante, pois permite a reflexão acerca de variados conceitos com os quais
trabalhamos na disciplina “Entre os saberes docentes e os aprenderes discentes:
questões teóricas e metodológicas”, dentre eles a própria Perspectiva
Semiótica, as noções de Crença, Dúvida e Hábito; e os conceitos de
Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.
A começar pela
Perspectiva Semiótica, vimos que essa abordagem investiga todas as formas de
linguagem, sejam elas verbais ou não verbais. A importância da linguagem está
relacionada à noção de cultura, pois segundo Peirce, é através da cultura que
significamos o mundo na qual estamos inseridos. Nessa lógica de pensamento, o
sujeito é parte do universo e representa esse universo por meio da linguagem.
Assim sendo, a cultura pode ser interpretada como a produção de signos,
significados e conhecimento, que
favorecem nossa relação de experiência com a mesma, isto é, através de um
processo de significação, conhecimento e produção de signos interagimos com os
objetos, com as pessoas e com a natureza.
Os signos, segundo
Pierce, estão manifestos nos sons, nas palavras, nos gestos, nos sentimentos,
enfim; em qualquer coisa que represente algo para alguém. Nesse processo de
semiose é imprescindível a relação entre
signo, objeto e interpretante; pois o signo é tudo aquilo que significa algo
para alguém, o objeto é o fundamento do signo manifesto em uma palavra, forma
ou imagem; e o interpretante diz respeito ao processo de representação, de
significação ou interpretação que possibilita a produção e abstração dos
signos.
Pois bem. Por meio da
perspectiva semiótica reflito sobre a narrativa do filme “O Enigma de Kaspar
Hauser” no que compete à importância da linguagem na interação que o sujeito
estabelece com o mundo a fim de que as experiências com o mundo, ou seja, os
resultados cognitivos de nossas
vivências, favoreçam a sua compreensão e significação. O filme exemplifica por
meio do próprio enredo esse processo. As primeiras experiências de Kasper
Hauser são com a linguagem. Através de um ardiloso percurso, a personagem se
desenvolve no sentido de adquirir a linguagem, de ser capaz de produzir signos
e de oportunizar a representação do seu pensamento.
Nesse sentido, a
personagem luta para inserir-se na cultura através da linguagem. Esse caminho lhe
é tortuoso, pois, embora outras personagens tentem auxiliá-lo, há uma
discrepância na relação entre signo, objeto e interpretante, já que Kaspar
Hauser compreende o que é o signo e o objeto, mas ainda não tem total
capacidade para fazer uma abstração mais elevada e uma representação mental
deles. Nesse sentido, o conhecimento da realidade fica barrado, em boa parte do
enredo, pela impossibilidade de que a verdadeira aprendizagem, cara à noção de
representatividade, não acontece.
Podemos exemplificar a
trajetória do processo da aquisição da linguagem, da cultura e da representação
dos signos ao longo de todo o enredo do filme, a começar pelo início em que
Kaspar Hauser vive a experiência de pronunciar as primeiras palavras e
escrevê-las em uma folha de papel. Suas primeiras aprendizagens giram em torno
da escrita, da leitura e da pronúncia das palavras, como nas cenas em que um menino
lhe ensina as partes que compõe o corpo humano. Ao longo de 2 anos Kaspar
Hauser aprende, então, a dialogar e expressar o seu pensamento, além de
adquirir habilidades básicas de tocar piano e tricotar. Dessa forma, a
personagem socializa-se e começa a fazer parte da cultura à medida que se
comunica e expressa seu pensamento.
Outras noções caras à
teoria de Peirce são os conceitos de Crença, Dúvida e Hábito. Conforme vimos, a
Crença corresponde às predisposições que levam o sujeito a agir; a Dúvida é
fruto da relação de alteridade com o outro que faz com que as crenças sejam
colocadas em dúvida; e o Hábito é a modificação das crenças de modo que sejam
produzidos os costumes. A partir dessas noções, realizamos experiências com a
cultura e modificamos nossas condutas. Nesse sentido, o filme demonstra os
conceitos de Crença, Dúvida e Hábito na medida em que Kaspar Hauser, no
processo de socialização, modifica várias vezes os seus hábitos em prol da
contestação de suas crenças. Esses conceitos podem ser representados, por
exemplo, nas cenas em que Kaspar Hauser tem que modificar seus hábitos
selvagens em prol dos padrões de comportamento aceitos socialmente. A cena em
que ele senta-se à mesa para fazer uma refeição ilustra essa hipótese. Kaspar
Hauser era habituado a comer somente pão e tomar água. Sua idéia de refeição
era somente essa, até que ele é impelido a degustar outros tipos de alimentos e
líquidos. Sua primeira reação é de rejeição. Porém, à medida que lhe ensinam
como manusear um talher e cultivar o sabor dos alimentos, então a personagem
adquire o hábito e o costume de alimentar-se corretamente. A cena descrita
ilustra, portanto, o entrelaçamento entre os processos de crença, dúvida e
hábito que modificam a conduta da personagem.
Por fim, ressalto a
importância dos conceitos de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, pois
eles são fundamentais na interação que estabelecemos com o mundo e com a
cultura. Nesse sentido, nossas experiências com o universo estão pautadas nos
primeiros contatos e reações que temos diante dos objetos, essa é uma relação
de Primeiridade. Se diante desse objeto algo nos desperta certa inquietação,
que nos faz pensar sobre ele, então estabelecemos
uma relação de Secundidade com o mesmo. Por fim, quando há a abstração acerca
desse objeto, ou seja, a representação que nos permite a sua compreensão,
então, atingimos uma relação de Terceiridade.
Em “O Enigma de Kaspar
Hauser”, essas noções podem ser visualizadas através de várias cenas, entretanto,
ressalto uma em particular em que a personagem tem seu primeiro contato com a
chama de uma vela. A primeira reação de Kaspar Hauser é de admiração, pois seus
olhos acompanham a luz que o fogo provoca e sua mão tenta capturar o fogo. Em
seguida, a personagem deixa sua mão sobre a chama e reage diante da dor que ela
lhe provoca. Por fim, Kaspar Hauser chora constatando que a chama provoca
alguma reação sobre o seu corpo. Nessa cena em especial é possível compreender
as relações entre Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Entretanto, em
outras cenas, parece-me que a personagem só consegue intermediar entre as duas
primeiras, pois a abstração acerca de um objeto não acontece, como na cena em
que ele observa uma torre e conclui que para construí-la é preciso possuir sua altura.
Embora seu tutor lhe explique que há andaimes que possibilitam sua construção,
Kaspar Hauser não crê que isso seja possível, pois não compreende como esse
fenômeno acontece.
Assim sendo, através
dessa breve análise acredito ser válida a relação estabelecida entre o filme “O
enigma de Kaspar Hauser” e a Semiótica. Conforme visto em disciplina, a
semiótica nos dá suporte teórico para compreendermos o entrelaçamento entre
sujeito, cultura e linguagem no que compete à interação que estabelecemos com o
mundo que nos cerca de modo que nossas experiências com a cultura sejam
favorecidas pela linguagem, pois é com signos que atribuímos sentido às nossas
vivências. No filme, esse entrelaçamento é evidente, já que no desenvolvimento
de Kaspar Hauser seus esforços giram em torno da aquisição da cultura, do
conhecimento e da linguagem como formas de conhecer e compreender o mundo da
qual ele faz parte.
Segue o link: http://www.youtube.com/watch?v=9bnug0gS2wQ
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.