Charlot
apresenta os resultados de uma pesquisa realizada em duas escolas secundárias,
localizadas na periferia de Paris. Um dos pontos abordados pela pesquisa é a análise
do “fracasso escolar” em relação ao saber. Diferente das pesquisas realizadas
até então, que procuram explicar esse fenômeno de sucesso ou fracasso ligando-o
às condições/ origem social dos alunos (teorias da reprodução), Charlot tentou
desenvolver sua pesquisa considerando, além das influências do meio social, a
história singular que cada aluno estabelece com o saber, bem como as práticas
de ensino e as políticas dos estabelecimentos escolares. Grande parte dos
alunos de classes pouco favorecidas fracassam. Mas o que leva alguns a obterem
sucesso?
A questão é: que
sentido tem para a criança o fato de ir à escola e de aprender
coisas, o que
mobiliza no campo escolar, o que a incita a estudar? [...]
O conjunto de nossas
questões é sintetizado na noção de relação com o saber.
[...] A relação com o
saber se enraíza na própria identidade do indivíduo: questiona
seus modelos,
suas expectativas em face da vida, do futuro, da imagem de si
mesmo e das suas
relações de identidade com o saber. (CHARLOT, 2000, p. 49)
O
autor relata que é necessário fazer uma “leitura positiva” da realidade social
escolar (CHARLOT, 2000) para podermos compreender os processos que estruturam
essa realidade, ou seja, os processos que levam às histórias singulares e suas
particularidades.
A opção para coleta de dados na pesquisa em questão, foram “inventários de saber”
e entrevistas semidirigidas aprofundadas.
Os
“inventários de saber” são escritos pelos próprios alunos, a partir de
perguntas que levam o aluno a pensar, fazer escolhas e escrever. “Aprendi
coisas em casa, na cidade, na escola em outros lugares. O que para mim é
importante em tudo isso? E agora, o que espero? (CHARLOT, 2000) O objetivo dos resultado
da escrita desses relatos não é saber exatamente que conteúdos o aluno aprendeu,
mas o que faz sentido para ele entre as coisas que aprendeu, ou seja, os dados
revelarão qual a relação com o saber e com a escola que os alunos possuem.
Segue
abaixo uma breve caracterização das escolas pesquisadas:
·
Zona
de Educação Prioritária (ZEP) de Saint-Denis – periferia norte de Paris
População de baixa renda, cerca de 12 mil habitantes, a qual são dirigidos
procedimentos especiais; bairro antigo, com velhos conjuntos habitacionais;
vivem em grande número no bairro: portugueses, argelinos e negros africanos. A
maioria dos pais de aluno são operários no setor industrial ou artesanal,
metade das mães não têm profissão, outras cuidam de crianças ou são empregadas
domésticas.
·
Escola
Massy-Palaiseau – periferia sul de Paris – alunos vem de bairros muito
diferente: conjuntos habitacionais, pequenos edifícios, grandes prédios e uma
vila com características parecidas com a da ZEP de Saint-Denis. Os pais têm
profissões diversificadas, desde engenheiros, professores, executivos, até
funcionários e operários qualificados. A escola atende bons alunos e alunos com
dificuldades (estes vindos de famílias da classe popular).
Em Saint-Denis foram
recolhidos 162 inventários (em classes de 5ª à 8ª série) e nove entrevistas
aprofundadas. Em Massy foram 170 inventários (em classes de 5ª à 8ª série) e 22
entrevistas. Em sua maioria foram entrevistados bons alunos, pois havia
interesse em estudas os casos “atípicos” de sucesso.
Com os inventários e
entrevistas foi feita uma análise qualitativa, cujo objetivo não era, exclusivamente,
descobrir a frequência dos temas que surgiram, mas identificar os processos
entre os elementos que aparecem associados. Os inventários também foram
tratados quantitativamente, com construção de grades (categorias,
subcategorias), codificação, interpretação a partir das porcentagens e
qualitativamente em termos de análise das práticas de linguagem.
Procurei levantar
alguns pontos dos resultados dessa pesquisa num quadro comparativos entre as
escolas pesquisadas:
Processos
de mobilização na escola: a escolaridade como história
|
Em
ambas as escolas três temas que estruturam as histórias escolares apareceram
no discurso:
·
Estudei/
não estudei: em geral, os alunos com dificuldades não têm interiorizado o
fracasso; em suas falas fica claro que sabem que são capazes de estudar e “passar”
de ano, mas não conseguem porque não se esforçam (“preguiçosos, folgados”);
·
Os
colegas e o ambiente da classe: muitos alunos relatam que não estudam por
causa do “ambiente” da sala ou porque acabam se deixando levar pelos colegas
(de dentro ou fora da escola);
·
Gostar
do professor, gostar da matéria: a relação professor-aluno é um fator de
mobilização que está muito presente nos relatos dos alunos. O mau professor
de acordo com eles é aquele que bate na mesa, não explica direito, não dá
conselhos, não se pode falar com ele. Já o bom professor é aquele paciente,
que explica bem, que provoca a vontade de estudar, é tranquilo, e conversa
com os alunos.
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Saint-Denis
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Massy
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Processos
de mobilização em relação à escola: a profissão e saber
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-
a maioria dos alunos de Saint-Denis (75%) acreditam que ir à escola tem
sentido para seu futuro, “para ter uma boa profissão, uma boa vida”;
25%
porém, não estão mobilizados em relação à escola, mas em relação à outras
coisas, como problemas pessoais;
-
pelo menos metade dos alunos
relacionam a simples frequência à escol a e o cumprimento de suas regras, como
condição de acesso à profissão;
-
apenas 20% dos aluno, o acesso à profissão está ligado à aquisição de
saberes.
-
para os alunos de Saint-Denis e das classes fracas de Massy, a relação com a
escola é uma relação com a profissão, “a relação com a escola não implica uma
relação com o próprio saber” (CHARLOT, 2000, p. 55)
|
-
os alunos de Massy também esperam da escola uma boa profissão, mas a relação
com o saber é diferente;
-
há casos em que o próprio saber levou à escolha da profissão;
-
“A relação com a escola é então uma relação com o saber, pois o saber
apresenta um sentido em si mesmo, ele pode ser importante sem ser útil, e
pode mesmo ser importante e inútil.” (CHARLOT, 2000, p. 56);
-
em Massy os alunos “vivem” na escola, não ficam esperando sair da escola para
viver e sua escolaridade é pensada em termos de bases e de progressão do
saber.
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Processos
de mobilização em relação à escola: a demanda familiar
|
·
a
demanda familiar é um dos fatores que contribuem para a mobilização do aluno
em relação à escola;
·
os
discursos mostram a importância que as famílias dão ao sucesso escolar de
seus filhos, mesmo aquelas que estão despreparadas tecnicamente para
ajudá-los, sustentam uma mobilização no jovem em relação à escola;
·
os
processos de mobilização utilizados pelas famílias s e diferenciam: alguns
controlam, ajudam , “empurram” fazendo referência ao futuro, ao desemprego as
dificuldades da vida; outras impõem metas tão absurdas que os jovens acabam
paralisados e não as conseguem alcançar;
·
o
que dá resultado parece ser ter confiança, ter orgulho dos resultados dos
alunos;
·
a
mobilização mais forte parece ser aquela quando o sucesso dos filhos é vivido
pelos pais como se fosse a conquista do projeto que provocou sua migração;
·
o
capital cultural transmitido pelas famílias tem efeito na relação dos jovens
com o saber, mas não o determina, já que muitas crianças pesquisadas não
conseguiam mobilizar esses conhecimentos em relação à escola;
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Saint-Denis
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Massy
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Processos
epistêmicos
|
- a
partir dos inventários, os tipos de aprendizagem mais evocados pelos alunos
de Saint-Denis estavam mais ligados às atividades quotidianas;
-
os conteúdos não fazem muito sentido para os alunos, já que raramente são
citados nos inventários;
-
o aluno cumpre o programa, adquire capacidades (ler, escrever, contar) e
outras aprendizagens que o tornarão capazes de se adaptar às diferentes
situações;
-
a relação desses alunos com o saber é o que eles constroem na vida cotidiana
e levam para a escola (o eu permanece imbricado na situação);
-
quanto à linguagem utilizada nos inventários: em geral os textos são curtos,
com informações objetivas às questões colocadas; texto com poucos adjetivos,
advérbios, julgamentos, opiniões, comentários;
- tanto em Saint-Denis como em Massy, as
meninas se referem mais aos aprendizados afetivos e de relações que os
meninos;
|
-
em Massy, ao contrário, os alunos evocaram mais os aprendizados intelectuais
e escolares;
-
os alunos são mais centrados nos aprendizados intelectuais e escolares;
-
“Aprender é para eles apropriar-se dos objetos do saber, ter acesso a um
mundo organizado em disciplinas no qual se progride a partir de boas bases.”
(CHARLOT, 2000, p. 59) – objetivação-denominação do objeto de saber;
-
eles mantêm uma relação com o saber e não apenas com o aprendizado;
- os
inventários são textos mais longos, com argumentação, comentários, opiniões e
posicionamento do aluno em relação ao saber;
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Relação
social com o saber
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-
a relação com o saber é uma relação social: em Saint-Denis, essa relação é
muitas vezes tensa, o vínculo estabelecido com a escola exprime a necessidade
de ter acesso a uma profissão, ter um a”vida normal”;
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-
em Massy essa relação com a escola é mais tranquila, mesmo entre os alunos
com maiores dificuldades; almejam um futuro de sucesso, mas aliado ao saber.
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Nenhum
desses processos (operatórios, epsitêmicos e social) determinam o sucesso ou o
fracasso escolar, é a articulação dos processos que acontecem em cada história,
com cada sujeito em sua singularidade e em relação com o mundo, que estruturam
as relações com o saber.
O
aluno não estudará se não ver sentido na escola, mas só a mobilização em
relação à escola não é garantia de sucesso. Família, história escolar e outros
processos precisam operar articulados para que essa mobilização torne-se
efetiva.
REFERÊNCIA
CHARLOT,
B. Relação com o saber e com a escola entre estudantes de periferia. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 97,
p. 47-63, maio 1996.
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