Texto
escrito por Renato Beschizza Valentin, no Verão de 2013
“Ideais de conduta” é o título de um texto escrito por
Charles Sanders Peirce (1838-1914) no ano de 1903 – portanto, no início da
última década de vida do renomado filósofo estadunidense. Ademais, estamos
diante de um manuscrito bastante curto. Ambas as características fazem do texto
“Ideais de conduta” algo digno de atenção da parte dos interessados na
filosofia pragmatista e nas concepções pedagógicas de Peirce, ora materializada
de forma sucinta e madura. Quando um filósofo da grandeza de um Charles Pierce
redige um manuscrito curto em plena maturidade intelectual, é de se esperar que
o conteúdo do manuscrito tenha lá a sua importância para a compreensão do
pragmatismo filosófico num momento de culminância da vida e da obra daquele que
foi o herói fundador desta vertente do pensamento moderno nos Estados Unidos.
Nas palavras do tradutor brasileiro, o supracitado texto peirceano consiste em
“um convite ao leitor a uma visão contemporânea do ideal de amálgama entre o
Belo, o Bom e o Verdadeiro” (p. 79).
Já de início, o leitor do texto supracitado se depara com
alguns pontos centrais de reflexão da filosofia pragmatista: no primeiro
parágrafo, Peirce discorre sobre os três estágios básicos do processo de
conhecimento, todavia, sem qualquer preocupação de dar nomes a eles – tanto é
que, de fato, neste texto de maturidade, o autor não os nomeia – mas, sim, com
a preocupação de explica-los com o fraseado sucinto que se repete ao longo de
todo o texto. A princípio, as coisas do mundo e da vida se apresentam aos seres
humanos por sua qualidade estética, o que é o mesmo que dizer que, para os
seres humanos, quando de seu primeiro breve contato com determinada coisa
(concebida aqui a partir da acepção positivista de coisa como objeto de
conhecimento), essa coisa é bela ou não, atrai ou não, gosta-se dela ou não, mas,
em todo caso, ela não deixa de consistir em um objeto de conhecimento e desejo.
Em um segundo momento, os seres humanos procuram ajustar suas idéias sobre essa
coisa já-tomada como objeto de apreciação estética, descontentes que são com as
noções mais primárias e superficiais a respeito de coisas do mundo e da vida
que afetam e incomodam os seres humanos coletiva e individualmente. Em um
terceiro momento, os seres humanos ponderam sobre as implicações práticas das
idéias e julgamentos formulados por ele sobre as coisas que os afetam coletiva
e individualmente – e aqui reponta a preocupação pierceana de conectar o
processo de conhecimento com a experiência dos seres humanas, ao ponto de
afirmar que o processo de conhecimento desemboca, em seu estágio avançado, na
ponderação a respeito das consequências práticas e vitais daquilo que se sabe
sobre determinada coisa.
No segundo parágrafo, encontra-se a reflexão de Peirce sobre
o hábito gerado e modificado pela experiência humana. Ao longo da vida, os
seres humanos vivenciam situações mais ou menos corriqueiras, aprendem alguma
coisa com elas e, no limite, aprendem a lidar com elas e com tudo o que elas
implicam. Em experiências futuras, o indivíduo agirá de acordo com a lição
deixada por sua memória de experiências passadas e correlatas. A lição deixada
pela memória de um indivíduo fomenta nele o hábito, concebido por Peirce como
inclinação comportamental sedimentada na consciência humana, como disposição
razoavelmente duradoura para agir de uma determinada maneira.
Mais adiante, Pierce argumenta que
tudo aquilo que foi sagrado e acumulado pela experiência humana pode ser
modificado por experiências futuras nas quais a operacionalização do hábito
redundou em resultados negativos para o sujeito e imprevistos por ele. De
encontro a essa reflexão, mas de acordo com ela, estaria o pensamento marxista de
Saviani, que acreditava que, numa escola verdadeiramente democrática e
progressista, a socialização do patrimônio cultural acumulado pela humanidade
teria que anteceder a problematização e a superação daquilo a que nos
habituamos a fazer e pensar em determinadas circunstâncias e em relação a
determinadas coisas.
Ao longo de todo o manuscrito,
sobressalta a crença e a mensagem de que os seres humanos possuem certo
controle sobre a conduta, e de que o raciocínio é o mecanismo através do qual
os seres humanos controlam, regulam, modificam, afirmam e negam cada qual seu
próprio modo de agir e de pensar. Pierce insiste nesses ensinamentos de cabo a
rabo desse manuscrito ao mesmo tempo maduro e breve, porque culminante. Os
seres humanos podem tornar as suas vidas mais razoáveis, tanto individual
quanto coletivamente, na medida em que crescem, vivem, raciocinam e aprendem da
vida tudo aquilo que nela há de Belo, Bom e Verdadeiro. No auge de sua
trajetória, mesmo quando a Belle Époche
entrava em crise e dava lugar a um período de intensificação do ódio e da
violência nas relações entre as pessoas e entre as nações do Velho Mundo, o
herói fundador do pragmatismo americano ainda acreditava que as pessoas teriam
condições de se livrar das taras, das inconsistências, as iniquidades e dos preconceitos contidos em
tudo o quanto foi feito, pensado e experimentado pela humanidade ao longo de
sua passagem pelo mundo. E não cabe suspeita de que Peirce encarava a
instituição escolar como sendo o fulcro do raciocínio livre e desenvolto de que
necessitam os seres humanos para superar o passado e melhorar o presente.
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