A
introdução do livro "A mistificação
pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação",
de Bernard Charlot, se propõe a duas funções: (re)contar ao leitor o propósito da
obra e o contexto em que ele foi escrito, na década de 1970; e, sobretudo, compartilhar
"chaves" para que novos olhares possam ser lançados ao livro e as
questões que dele emergem. Em especial Charlot chama a atenção para as formas
atuais de mistificação pedagógica não existentes na época da elaboração da
primeira edição do livro, como as supostas explicações biologizantes da
aprendizagem decorrentes da neurociência e as apostas nas implementação das
Tecnologias da Informação e Comunicação como solução definitiva para os déficits
educacionais de nossos tempos.
Entre
as chaves citadas pelo autor para uma compreensão mais clara de suas ideias,
Charlot oferece ao leitor um destaque a sua trajetória como pesquisador, marcada
pela passagem das questões afetas a reprodução da desigualdade social pela
educação ao planos do sentido humano de aprender. Neste ponto o autor, a meu
ver, nos coloca em diálogo com aquilo que Charles S. Peirce, em seu texto "A
fixação das crenças" (1977), definiu como o princípio do ato de pesquisar:
o esforço empreendido para transitarmos do estado de dúvida à crença.
Charlot
(2013) afirma em sua introdução que:
"O autor do texto de 1975 não se atém a analisar; ele denuncia,
indigna-se. O discurso pedagógico disfarça a desigualdade social em desigualdade
natural e cultural: essa asserção é comprovada pela análise. Fazer isso é inaceitável: esse enunciado
não é mais um resultado de pesquisa, é, sim, postura ética e política."
(p. 46)
Com
essa afirmação Charlot apresenta a dimensão humana e política que atravessa
sua publicação e, mesmo reafirmando-a como legítima, alerta ao leitor que esse
ponto em sua obra não é movido por um princípio investigativo, por assim dizer.
Há, evidentemente, uma causa com qual o autor se engajou e ainda se engaja, isto
porque a existência da desigualdade social não é para ele alvo de dúvida, é fato,
é habito de nossa sociedade. O que lhe é profundamente perturbador e questionável
é se tal desigualdade é resultado de uma condição natural do homem. Contra essa
dúvida Charlot dedicou suas primeiras pesquisas e, conforme descreve em seu
prefácio, foi capaz de comprovar que a desigualdade social é fruto de uma
condição humana histórica que é omitida nos discursos pedagógicos - tradicional e
construtivista.
Ao
consolidar sua crítica, no entanto, Charlot reconhece que uma nova crença foi
também consolidada na tradição sociológica francesa acerca da educação:
cristalizou-se a ideia da reprodução social da desigualdade pela educação como
chave explicativa para o fracasso escolar. Novamente o autor foi clamado a colocar em
dúvida parte desse saber que ele próprio desenvolveu no livro "A mistificação pedagógica" e disso resultou
seus textos ulteriores, em que dedicou-se a relação dos estudantes com o saber.
Nesse
movimento, Charlot chama seu leitor para observar sua postura de questionamento
ou de perquirição para com a realidade, afinal, por mais que os discursos
pedagógicos por ele denunciados fossem reprodutores de uma condição de
desigualdade social, e por mais que a escola fosse uma instância de reprodução
social, haviam estudantes na realidade que driblavam as adversidades sociais e
obtinham êxito. Novas dúvidas, portanto, convidaram Charlot a testar suas
convicções. Houvesse o autor seguido o método descrito por Peirce como "método
da tenacidade" para saciar suas dúvidas não teria ele até hoje mudado o foco
de suas pesquisas iniciais. Foi,
portanto, por meio do método científico - aquele em que as crenças são convertidas
em dúvidas, que por sua vez são testadas e válidas publicamente, produzindo novas
crenças mais seguras à ação - que Charlot pôde avançar na produção de seu
conhecimento.
Desta
forma, o prefácio de Charlot é exemplo de uma postura que toma o método científico
abdutivo-indutivo como meio de passagem da dúvida à crença, interrompendo o que
antes era habitual diante de novas tensões geradas pela realidade. Neste
sentido, a postura de Charlot tem fundamento no que Peirce veio a denominar
como método científico, ou seja, assumindo a pesquisa com a função de liberar a
conduta de seu aspecto rotineiro, alargando continuamente o escopo da ação.
Mais do que adaptação, perquirir é colocar-se no movimento intencional em busca
de crescimento, de auto-aprimoramento e de exercício criativo no mundo.
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