O encontro com
o Prof. Bernard Charlot foi marcado com a objetividade e posicionamentos sólidos
acerca de parte do que ele propõe em seu Livro “A Mistificação Pedagógica:
realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação”. A realidade
social, num primeiro momento demarca sua fala, onde a mistificação pedagógica,
segundo sua opinião continua sendo a desigualdade social na qual vivemos. Ele
menciona que se existe a igualdade é porque existem as desigualdades, uma vez
que observamos resultados desiguais. Charlot tece comentários acerca das
pedagogias tradicional e nova, onde, ambas não consideram, em sua base, a
realidade social da criança o que ainda se perpetua como a mistificação
pedagógica atual. Na pedagogia tradicional, embasada no discurso da natureza
humana, a criança nasce do pecado original tornando-se uma criança já
corrompida (pelo desejo). À educação caberia, neste caso, libertá-la de seus
desejos disciplinando-a com a inculcação de regras e luta contra o corpo, fonte
de desejos, onde, se não houver a disciplina da razão, não haverá a disciplina
do corpo. Assim, na pedagogia tradicional a criança é treinada a libertar-se de
seus desejos, que a corrompe. A pedagogia nova lança mão de que a criança é
naturalmente inocente, ela não é boa e nem má, quem a corrompe é a sociedade
adulta que aniquila sua criatividade. Fortemente demarcada fica a questão da
natureza humana que, com ideologias antagônicas, em ambas as pedagogias, a
educação “é a luta contra a corrupção da natureza ideal do homem” e, assim, não
deram respostas à desigualdade social existente, uma vez que elas mesmas dão
conta de perpetuar essa realidade. No livro o autor faz menção e alerta para a
questão de se pensar o indivíduo como “determinado por sua natureza humana”, onde
se posiciona para o cuidado que temos que ter acerca desta visão inconsistente que
as ideologias acabaram por perpetuar na escola. O que existe na verdade e o
autor chama a atenção é para a existência de uma “condição humana” e sem determinismos.
Desta forma,
justifica o caráter mistificador da realidade social em que as escolas
continuam funcionando socialmente desiguais onde, por trás de uma pedagogia
tradicional ou nova, não deram conta de possibilitarem um debate livre da
referência à natureza humana. Mantêm-se viva, então, a perpetuação da divisão
social do trabalho e as desigualdades sociais, pois considerar apenas a
natureza humana e ocultar-lhe sua dimensão social, segundo o autor em seu livro
“silencia as realidades sociais, encobre as desigualdades, aceita-as
implicitamente e, muitas vezes, as legitima”.
Esse debate
continua vivo e justifica a reedição do livro muitos anos após sua publicação,
uma vez que ainda são muito presentes no debate pedagógico brasileiro atual discussões
sobre a pedagogia tradicional e a nova, por conta das práticas educativas
revestidas de contradições onde, uma expressiva parcela de professores não é
capaz de identificarem-se tradicionais ou construtivistas, transitando por essas
concepções, não sabendo ao certo como desenvolver seu trabalho, assim, seguem
ideologias que não são suas, mas que o sistema acaba impondo. Essa situação
está muito presente na escola e acredito que o professor deve estar atento ao
mundo, às questões que se colocam na sociedade, sendo imprescindível sua tomada
de decisão para firma-se enquanto profissional, mas consciente de sua ação no
meio social, fato que exige sua profissionalização, constantes estudos, a busca
pela formação continuada, ou seja, um dinâmico profissional que evolui
juntamente com a sociedade, mas consciente do que fazer e como atuar em seu
local de trabalho: a escola.
Dentre as
questões tratadas fala também do aluno em rede. Em um mundo desenvolvido
tecnologicamente acreditam que, basta-lhe ofertar um computador para eliminar as dificuldades e problemas da
aprendizagem deste aluno, o que também é uma grande mistificação, uma vez que
não basta equipar as escolas com computadores se não houver profissionais
atentos a saber lidar com esta ferramenta e com a consciência de que os problemas da educação não serão resolvidos
apenas com a informatização da educação. Sem dúvidas que são ferramentas
necessárias, mas que não substituem o professor do saber que segundo o autor,
em seu livro, diz de um profissional “guiando os alunos pelos caminhos do
sentido são imprescindíveis para a sociedade contemporânea se torne mesmo uma
sociedade do saber e não uma sociedade da informação”.
Charlot ainda
coloca que há uma desigualdade social frente à escola, mas não há um
determinismo histórico, conforme já mencionado neste comentário, onde a posição
social subjetiva não é independente da posição social objetiva e quem quer
pensar necessita de liberdade para isso, o que deve ser debatido no âmbito da
escola. Declara que não é o meio social da qual a pessoa vive que determinará
sua condição na escola e na vida e sim os meios com os quais ela terá acesso a
toda e qualquer situação que a permita estudar e como ela irá estudar e se
comportar diante desta situação, enquanto protagonista de sua história de vida
inserido num meio.
A história educacional é marcada pela
aceitação da reprodução das desigualdades sociais, onde se legitimou ao longo
dos anos essa situação e quando o discurso passou a ser o acesso à igualdade de
oportunidades, a educação acabou por acentuar ainda mais as desigualdades. Numa
perspectiva antropológica o indivíduo nasce em um mundo adulto, em um lugar no
espaço e no tempo, em um lugar na história, na cultura, onde é protagonista de
sua história e que não pode ser pensado sob a ótica das sociologias
deterministas. A educação, portanto,
deve considerar essa perspectiva uma vez que ela é que faz a ponte entre a
história da espécie humana passada, atual e futura, considerando um ser que
está inserido em uma sociedade e que se constitui nesta.
Por fim, uma
fala marcante de Charlot em relação a questão do sentido: “não há ato humano
sem sentido”, estamos permanentemente fazendo uma interpretação do mundo. Ele
ainda define sentido como sendo a “ação entre o motivo e o objetivo da ação, o
resultado”. Portanto o que de fato traz sentido às pessoas, qual o motivo
pessoal que as levam a buscar algo, a aprender algo? Na escola é necessário
partir de um problema que faça sentido para a criança, o trabalho do professor
é fazer “nascer questões” e não oferecê-las prontas. As crianças precisam de
coisas para pensar, coisas que dão sentido. Relacionando à semiótica em que a
construção de signos é constante, há um universo de semioses, resta refletirmos
sobre o que estamos fazendo, ou como podemos fazer para que a escola deixe de
ser marcada pela perpetuação das desigualdades sociais, da aceitação das naturezas
humanas e dos determinismos (posição social objetiva), do fracasso escolar, etc.
Charlot em seu livro coloca que “A educação é um fenômeno antropológico e não
pode ser pensada sem referência ao que é um ser humano, mas este não é definido
por sua natureza, mas por histórias articuladas: a da espécie, a da sua
sociedade e a sua”, uma tríade que deve pautar-se num processo de construção de
sentidos, mudanças de condutas a partir das consequências práticas vividas e
que possibilitam uma visão crítica e autocrítica nos processos educativos,
situações que envolvem a todos numa perspectiva de uma educação que promova uma
melhor compreensão da realidade, objetivando relações de saber construídas nas
relações com os outros, com a sociedade e cada um consigo mesmo.
Um forte
abraço. Obrigada Bernard Charlot pela disponibilidade, entusiasmo para um dia
inteiro dialogando e pela marcante presença.
Raquel Pozzenato Silazaki.
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