sábado, 7 de junho de 2014

O FUNDAMENTO SEMIÓTICO PARA (RE)PENSAR A RELAÇÃO OU A DICOTOMIA ENTRE TEORIA E PRÁTICA EDUCATIVA



Um dos temas mais frequentes abordado na literatura pedagógica se refere a relação teoria e prática. Isso porque desde muito se vem discutindo fundamentos para que teoria e prática não sejam mais tratadas como universos plenamente distintos, autônomos e hierárquicos.
A principal crítica veio endereçada ao que se convencionou chamar de racionalidade técnica (PEREZ-GOMES, 1995), um arauto da lógica dualista-instrumentalista que, entre outras coisas, concebeu os professores como mero aplicadores de técnicas desenvolvidas por especialistas. Segundo esta lógica, a teoria, desenvolvida por especialista, deve meramente ser reproduzida ou aplicada por professores, detentores de competências práticas ou didáticas.
Pintura de Corot, "A ponto de Nantes"
Metaforicamente podemos pensar que os professores são como pintores, entre uma paisagem descrita pela teoria, de um lado, e uma tela, chamada prática, de outro. As pinturas desses professores seriam, por assim dizer, o resultado de suas ações pedagógicas na prática. Do ponto de vista da racionalidade técnica, os professores não passariam de pintores realista. Pintores como o francês Camille Corot manifestaram em suas pinturas a exaltação da realidade que se apresentavam a eles, tratavam de reproduzir como em uma fotografia a paisagem colocada diante de si. Seus quadros possuíam a reprodução desapaixonada e neutra do que se oferecia à visão. O Realismo, na pintura, manteve-se dentro da tradição no que diz respeito à exatidão do traço e ao perfeito desenho de seus modelos (fossem paisagens ou personagens).
Assim também é o professor consolidado pela racionalidade técnica, um ser em busca da reprodução fiel das "paisagens" apresentadas nas teorias. Suas práticas devem espelhar a teoria com uma precisão fotográfica ou um quadro realista. Para isto precisam ter uma técnica perspicaz e um olhar aguçado para reproduzir a realidade circundante.
Esse modelo, por mais críticas que tenha recebido no âmbito acadêmico ainda impera em muitas das políticas públicas de educação, nos modelos de formação de professores e, por que não, no chão da escola, na atuação de seus profissionais.
Pintura de Monet, "O lago com Ninfeias"
O enfrentamento da questão foi realizado por meio da propositura da figura do professor reflexivo, professor pesquisador ou outros termos correlatos, que espelhariam uma racionalidade prática. Os professores descritos nesta perspectiva, por sua vez, teriam o caráter de outra escola de pintura. Estariam inclinados a conceber a relação teoria e prática de forma mais próxima ao que fizeram os pintores impressionistas em suas telas. Os impressionistas, como Claude Monet, Edouard Manet e Auguste Renoir já não buscavam a exatidão do realismo. Sabiam eles que a pintura (o produto de suas ações) não pode jamais ser a pura expressão da objetividade de uma realidade externa (uma paisagem ou uma teoria). Assim, o enfoque de suas pinceladas estava precisamente em capturar aquela impressão primeira que a realidade forçava sobre suas subjetividades, de modo a produzir na tela uma síntese entre o que capturavam de essencial da paisagem, sem desconsiderar as qualidades da tela (sua textura, a possibilidade de refletir todas as cores em seu fundo branco etc) e a própria experiência pessoal de pintar (faziam questão de misturar as cores que traziam em sua bagagem para fundi-las na tela, produzindo deste modo tons muito pessoais para retratar a paisagem). Assim, as pinturas impressionistas não revelam um retrato da realidade, ou uma realidade externa ou alheia ao pintor e sua conjuntura. Se tratava de pinturas que exprimiam uma síntese pessoal da forma como aqueles pintores percebiam a realidade em conexão com a tela e sua própria subjetividade.
Por isso, a arte impressionista revela não a realidade tal qual ele é, mas a realidade tal como ela se manifesta a nós, mediada pelas sensações (ou impressões), pelo subjetivo que haveria em cada artista, não sendo de forma alguma mera expressão da realidade exterior, mas a realidade sintetizada por nossas capacidade perceptiva de se confrontar com o mundo.
O professor reflexivo, tal qual essa metáfora, não desejaria, assim, reproduzir a teoria plenamente em suas práticas. Isto seria impossível, dado o dinamismo presente nas práticas pedagógicas em seus contextos concretos. Da teoria, esses professores extrairiam os principais traços, as principais cores, a essência manifesta em sua forma, as principais "impressões" (metaforicamente falando), para recriá-las de forma autoral em sua prática pedagógica, tendo em vista um diálogo permanente com os traços presentes na escola - dai a necessidade de constante reflexão e pesquisa, dado que essa realidade é sempre dinâmica e nunca estática como as paisagens das teorias.
A obra pedagógica de um professor reflexivo, ou professor pesquisador, deve ser a síntese daquilo que ele capturou de essencial da teoria, somado aos conhecimentos já constituídos em sua experiência e a imprevisibilidade do chão da escola.  A obra pedagógica aqui é sempre profundamente autoral. Não por acaso, o trabalho do professor reflexivo foi comparado ao de um artesão, que, apesar de ter algum modelo teórico em mente, atribui contornos próprios a cada obra, por entender que as qualidades que emanam da matéria prima de suas obras definem-nas tanto quanto ou mais do que qualquer modelo a priori da peça de arte.
Mas, afinal, o que tudo isso tem haver com Semiótica? A Semiótica é uma ciência ou lógica geral dos signos, destinada a investigar os signos em interação, inter-relação, em fluxo, para desvelar como uma "coisa" ou algo se interconecta a uma cadeia associativa infinitesimal de significações. O signo para Peirce (1975), não é senão algo que, sob certos aspectos ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Sendo assim, não seria plausível, considerar a problemática da relação teoria e prática também de um ponto de vista semiótico, concebendo as teorias pedagógicas como signos que nos colocam em interconexão com os pensamentos e intenções de outros autores? Sendo signos, por sua vez, tais teorias só podem representar tais pensamentos e intenções sob certos aspectos, nunca em sua totalidade. Daí que um dos fundamentos mais centrais para desvendar os limites da racionalidade técnica em seus intentos de se constituir como viseira para as práticas pedagógicas, desconsiderando a realidade concreta das escolas, dos alunos e dos professores, reside precisamente em seu fundamento semiótico, ou melhor em seus limites de significação - ignorados por aqueles que professam tal perspectiva de relação teoria e prática.
É precisamente essa consciência dos limites de significação de toda teoria pedagógica que funda a noção de um professor reflexivo. É este sujeito, por sua vez, quem deve significar as teorias em suas práticas concretas, por meio da reflexão e da pesquisa, buscando nesse processo confeccionar práticas pedagógicas, que por sua vez, também são signos das teorias pedagógicas que subjazem suas ações - sejam elas oriundas de especialistas ou da experiência pessoal e profissional que carregam.
Contudo, mesmo aqueles que sustentam uma proposição fundada na reflexão sobre a  prática, pouco tem observado os processos de significação que os professores fazem das teorias pedagógicas e/ou mesmo de suas práticas pedagógicas. Aqui reside um hiato ainda pouco explorado por tais autores, ou mesmo na literatura em Educação, de modo geral. Não seria a hora de nos aprofundarmos um pouco mais nos processos de significação presente nas relações teoria e prática em contextos concretos de atuação docente? Aqui temos mais uma porta de entrada em que a semiótica peirceana poderia contribuir para desenvolver novos olhares sob este terreno aparentemente já "muito conhecido".

PEIRCE, C.S. Semiótica e Filosofia. São Paulo: Cultrix, 1975

PÉREZ GOMES, A. O Pensamento Prático do Professor: A formação do professor como profissional reflexivo. In: NÓVOA, A. (Coord.). Os Professores e sua Formação. 2ª ed. Lisboa: D. Quixote, 1995. p. 93-114.

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