sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Das tricotomias no pensamento peirceano


A partir da discussão sobre o livro-tese “O jogo da cultura e a cultura do jogo: por uma semiótica da corporeidade”, de Pierre Normando Gomes-da-Silva (2011), houve certo aprofundamento da compreensão da noção de relações triádicas no pensamento de Charles Sanders Peirce. Conforme o autor, as  relações triádicas no processo de semiose podem ser subdividas em:
                -relações triádicas de comparação (participam da natureza das possibilidades);
                -relações triádicas de desempenho (participam da natureza dos fatos);
                -relações triádicas de pensamento (participam  da natureza das leis).
Contudo, nessas relações há distinção entre 3 correlatos:
                1º, de natureza mais simples, considerado mera possibilidade;
                2º, de complexidade intermediária, que se dá pela existência concreta;
                3º, de natureza mais complexa, manifesto por leis ou tipo geral.
                Essas relações triádicas, de acordo com os correlatos, dividem-se em tricotomias.
Níveis
Caracte-rísticas
Campo
Tipos de análise
Si mesmo
Objeto
Interpre-tante
Primei-ridade
Qualidade
Do possível
Sintático
Quali-signo
Ícone/ hipoícone: imagem/ diagrama/ metáfora
Rema
Secundi-dade
Ação/
Reação
Do existente
Semântico
Sin-signo
Índice
Dicente
Terceiri-dade
Genera-lização
Da lei
Pragmá-tico
Legi-signo
Símbolo
Argumen-to
Fonte: quadro da pág.256.
Porém, há outras relações triádicas, que são detalhadas nas dez tricotomias propostas por Peirce (de fato, Peirce apresenta maior detalhamento das tricotomias I, IV e IX):
                I-relação do signo consigo mesmo (quali, sin, legi-signos);
                II-modo de apresentação do objeto imediato (descritivo, designativo, copulante);
                III-modo de ser do objeto imediato (abstrativo, concretivo, coletivo);
                IV-relação do signo com o objeto dinâmico (ícone, índice, símbolo);
V-modo de apresentação do interpretante imediato;
                VI-modo de ser do interpretante dinâmico;
                VII-relação do signo com o interpretante dinâmico;
                VIII-natureza do interpretante final;
                IX-relação do signo com o interpretante final (rema, dicente, argumento);
                X-relação do signo com seu objeto e o interpretante.
                Acerca das três tricotomias mais detalhadas, na I a relação do signo com o próprio signo implica na interrelação entre quali-signo, sin-signo e legi-signo, na qual o quali-signo é um signo ainda não corporificado ou realizado. Por sua vez, o sin-signo é um acontecimento real e envolve quali-signos e o legi-signo é uma lei que é um signo convencional (significante que ganha significado por meio de sua aplicação – réplica/sin-signo).
                Como exemplos o autor aponta:
                -quali-signo ou poti-signo: “faça o que digo, mas não faça o que faço”;
                -sin-signo ou acti-signo: signo experimentado aqui e agora, unicamente, irrepetível, e.g. “cada rosto”;
                -legi-signo ou “signo familiar”, e.g., “Cuidado! Nesse lugar há travessia de crianças brincando”.
                Acerca da IV, a relação com o objeto dinâmico implica na interrelação entre Ícone, índice e símbolo, na qual o ícone faz ver o objeto por força de caracteres próprios ou por semelhança. Nesse sentido, há hipoícones divididos em: imagens, diagramas e metáforas. Já o índice indica o objeto em razão de ser afetado por ele e o símbolo representa o objeto por força da lei.
                São apontados como exemplos:
                -ícone por meio de imagens, diagramas e metáforas: respectivamente, letra “V”, estalar os dedos e aperto de mão;
                -andar cambaleante como indício de embriaguez;
                -mão em figa para exemplificar o símbolo.
                Finalmente, na IX há a relação com o interpretante final, que implica na interrelação entre rema, dicente e argumento. Nessa relação, o rema é uma conjectura, uma hipótese interpretativa. Não obstante, o dicente ou “deci-signo” é um signo de existência concreta que oferece base para sua interpretação, ao passo que o argumento é signo de lei, que representa seu objeto em caráter de signo, juízo e assevera uma proposição.
São tidos como exemplos:
                -para o rema, uma garota saltando pode ter a forma de um salto coreográfico de uma bailarina;
                -para o dicente, ao apontar o estado emocional por meio da comunicação facial;
                -para o argumento, e.g., o envolvimento do m. orbicularis oculi ao definir um sorriso genuíno.
Estrutura sígnica
Tricoto-mia
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
REPRESENTAMEN
I
Quali-signo
Sin-signo
Legi-signo
OBJETO imediato
               dinâmico
II
III
IV
Descritivo
Abstrativo
Ícone
Designativo
Concretivo
Índice
Distributivo
Coletivo
Símbolo
INTERPRETANTE imed.
                       dinâmico:
emocional, energético, lógico
                        final
V
VI
VII
VIII
IX
Hipotético
Simpático
Sugestivo
Gratificante
Rema:
Categórico
Percussivo
Imperativo
Prático
Dicente:
Relativo
Usual
Significativo
Pragmático
Argumento


Quali-signo icônico; Sin-signo icônico; Sin-signo indicial; Legi-signo icônico; Legi-signo indicial; Legi-signo simbólico
Sin-signo indicial; Legi-signo indicial; Legi-signo simbólico

Fonte: quadro da pág.264
Com intenção de elucidar eventuais aplicações no campo da Educação Física, mais especificamente no estudo da semiótica do jogo motor, o autor aponta que a semiótica na investigação do “jogo motor” consiste em desvelar o arranjo criado pela sucessão dos gestos na atividade lúdica. Entende-se, nessa perspectiva, que os feixes de ações e inações corporais tanto configuram a fisionomia do jogo, sua natureza peculiar ou cultura própria.
                A “cultura do jogo” é tida, assim, como uma construção social, provida de sentido e significado. Ela é organizada pela interação dos sucessivos gestos vividos no espaço e no tempo de uma situação lúdica.
                Por sua vez, a situação lúdica é o contexto criado pelos jogadores ao jogarem e, em decorrência, entender a cultura do jogo significa decifrar a lógica ou o sistema de significação que orienta a conduta dos sujeitos que brincam.
                Em síntese, o autor conclui sua argumentação com alguns exemplos de jogos. Afirma que os jogos de “azar” seriam os jogos humanos por excelência (conforme Caillois) e jogos infantis seriam os primeiros no desenvolvimento humano (conforme Piaget). Nessa alegoria, pormenoriza três “cenas” de situações do jogo de roleta e três observações de situações de jogo infantil.
                Para contextualizar a pergunta central do autor, concluirei este comentário com outro exemplo de jogo, no caso o xadrez:
A pergunta do autor é “Qual é a tendência dos gestos na cultura do jogo?”. E ele faz referência à tendencialidade da composição dos gestos no jogo, bem como indica que há busca por um tipo geral de legi-signo, que  governaria “réplicas singulares”. Para o autor, já a semelhança entre o jogo particular e sua configuração geral é um ícone, do tipo rema, porque é o interpretante final.
Pois bem, no caso do xadrez cada posição é particularmente irredutível em sua significação, porém há três momentos importantes:
-no início há que se optar entre as inúmeras possibilidades e, a partir da escolha feita, os lances seguintes e as combinações que se derem têm infinitas possibilidades. Tanto isto ocorre que não há “lance errado” no 1º movimento do jogo. Contudo, há preferências entre os jogadores e são elas que os mobilizam para suas escolhas. Nesse sentido, as preferências mais comuns são as formas de abertura que caracterizam o jogo: aberto, semiaberto, fechado, irregular ou hipermoderno. Note-se que as primeiras são documentadas há mais de 500 anos e as mais “modernas” ou recentes já têm registros com quase 200 anos. Curiosamente, por exemplo, um ser humano é geralmente mais eficaz que um computador neste momento do jogo, independente da potência do mecanismo artificial.
-no meio do jogo há uma planificação dinâmica e posicional, que toma a forma de uma interpretação constante da situação que se apresenta a cada lance do jogo. O único critério que se manifesta nesse momento que é concomitantemente tanto de planificação quanto de ação é a imanência do real, daquilo que inegavelmente está contido nas próprias condições atuais do jogo e suas implicações igualmente inegáveis para sua sequência. Esse é o espaço da manifestação criativa, justificada por uma objetividade que é orientada senão pela subjetividade que o jogador tem em si em todo o processo decisório, lidando tanto com as limitações posicionais e materiais, quanto com as possibilidades interativas que vislumbra.
-no momento final, as reduções materiais podem ou não ocorrer, embora geralmente ocorram, mas é o “estado final” das coisas que resta e este resultado é invariavelmente único. Uma posição final é irrepetível justamente pela infinitude de elementos que interagem entre si e que culminam com sua ocorrência. E, é justamente nesse sentido de infinitude, que há uma propriedade latente nas tricotomias para as limitações tecnológicas à época de Peirce (e que demandaram seu esforço para afirmar que são infinitas, entretanto somente detalhá-las e demonstrá-las em dez), mas que se concretizou operacionalmente com a tecnologia disponível na segunda metade do século XX. Pode-se afirmar que as tricotomias no processo de semiose são tão infinitas quanto o é um fractal, pois a infinitude é justamente sua característica primeira. Como exemplo “final” segue a indicação do fractal de Benoît Mandelbrot para apreciação estética, mas o mesmo se daria com quaisquer posições nos conjuntos de Julia-Fatou, Cantor ou outros. O link é http://www.youtube.com/watch?v=G_GBwuYuOOs

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