sábado, 12 de janeiro de 2013

O fenômeno do fracasso escolar – relatos de uma pesquisa


Charlot apresenta os resultados de uma pesquisa realizada em duas escolas secundárias, localizadas na periferia de Paris. Um dos pontos abordados pela pesquisa é a análise do “fracasso escolar” em relação ao saber. Diferente das pesquisas realizadas até então, que procuram explicar esse fenômeno de sucesso ou fracasso ligando-o às condições/ origem social dos alunos (teorias da reprodução), Charlot tentou desenvolver sua pesquisa considerando, além das influências do meio social, a história singular que cada aluno estabelece com o saber, bem como as práticas de ensino e as políticas dos estabelecimentos escolares. Grande parte dos alunos de classes pouco favorecidas fracassam. Mas o que leva alguns a obterem sucesso?

A questão é: que sentido tem para a criança o fato de ir à escola e de aprender
coisas, o que mobiliza no campo escolar, o que a incita a estudar? [...]
                                        O conjunto de nossas questões é sintetizado na noção de relação com o saber.
                                        [...] A relação com o saber se enraíza na própria identidade do indivíduo: questiona
                                           seus modelos, suas expectativas em face da vida, do futuro, da imagem de si
                                           mesmo e das suas relações de identidade com o saber. (CHARLOT, 2000, p. 49)

O autor relata que é necessário fazer uma “leitura positiva” da realidade social escolar (CHARLOT, 2000) para podermos compreender os processos que estruturam essa realidade, ou seja, os processos que levam às histórias singulares e suas particularidades.
A opção para coleta de dados na pesquisa em questão, foram “inventários de saber” e entrevistas semidirigidas aprofundadas.

Os “inventários de saber” são escritos pelos próprios alunos, a partir de perguntas que levam o aluno a pensar, fazer escolhas e escrever. “Aprendi coisas em casa, na cidade, na escola em outros lugares. O que para mim é importante em tudo isso? E agora, o que espero? (CHARLOT, 2000) O objetivo dos resultado da escrita desses relatos não é saber exatamente que conteúdos o aluno aprendeu, mas o que faz sentido para ele entre as coisas que aprendeu, ou seja, os dados revelarão qual a relação com o saber e com a escola que os alunos possuem.

Segue abaixo uma breve caracterização das escolas pesquisadas:
·         Zona de Educação Prioritária (ZEP) de Saint-Denis – periferia norte de Paris População de baixa renda, cerca de 12 mil habitantes, a qual são dirigidos procedimentos especiais; bairro antigo, com velhos conjuntos habitacionais; vivem em grande número no bairro: portugueses, argelinos e negros africanos. A maioria dos pais de aluno são operários no setor industrial ou artesanal, metade das mães não têm profissão, outras cuidam de crianças ou são empregadas domésticas.
·         Escola Massy-Palaiseau – periferia sul de Paris – alunos vem de bairros muito diferente: conjuntos habitacionais, pequenos edifícios, grandes prédios e uma vila com características parecidas com a da ZEP de Saint-Denis. Os pais têm profissões diversificadas, desde engenheiros, professores, executivos, até funcionários e operários qualificados. A escola atende bons alunos e alunos com dificuldades (estes vindos de famílias da classe popular).
Em Saint-Denis foram recolhidos 162 inventários (em classes de 5ª à 8ª série) e nove entrevistas aprofundadas. Em Massy foram 170 inventários (em classes de 5ª à 8ª série) e 22 entrevistas. Em sua maioria foram entrevistados bons alunos, pois havia interesse em estudas os casos “atípicos” de sucesso.

Com os inventários e entrevistas foi feita uma análise qualitativa, cujo objetivo não era, exclusivamente, descobrir a frequência dos temas que surgiram, mas identificar os processos entre os elementos que aparecem associados. Os inventários também foram tratados quantitativamente, com construção de grades (categorias, subcategorias), codificação, interpretação a partir das porcentagens e qualitativamente em termos de análise das práticas de linguagem.

Procurei levantar alguns pontos dos resultados dessa pesquisa num quadro comparativos entre as escolas pesquisadas:

Processos de mobilização na escola: a escolaridade como história
Em ambas as escolas três temas que estruturam as histórias escolares apareceram no discurso:
·         Estudei/ não estudei: em geral, os alunos com dificuldades não têm interiorizado o fracasso; em suas falas fica claro que sabem que são capazes de estudar e “passar” de ano, mas não conseguem porque não se esforçam (“preguiçosos, folgados”);
·         Os colegas e o ambiente da classe: muitos alunos relatam que não estudam por causa do “ambiente” da sala ou porque acabam se deixando levar pelos colegas (de dentro ou fora da escola);
·         Gostar do professor, gostar da matéria: a relação professor-aluno é um fator de mobilização que está muito presente nos relatos dos alunos. O mau professor de acordo com eles é aquele que bate na mesa, não explica direito, não dá conselhos, não se pode falar com ele. Já o bom professor é aquele paciente, que explica bem, que provoca a vontade de estudar, é tranquilo, e conversa com os alunos.
 
 
Saint-Denis
Massy
Processos de mobilização em relação à escola: a profissão e saber
- a maioria dos alunos de Saint-Denis (75%) acreditam que ir à escola tem sentido para seu futuro, “para ter uma boa profissão, uma boa vida”;
25% porém, não estão mobilizados em relação à escola, mas em relação à outras coisas, como problemas pessoais;
- pelo menos metade dos alunos  relacionam a simples frequência à escolnam a simples frequunos  acredita queam que ir a e o cumprimento de suas regras, como condição de acesso à profissão;
- apenas 20% dos aluno, o acesso à profissão está ligado à aquisição de saberes.
- para os alunos de Saint-Denis e das classes fracas de Massy, a relação com a escola é uma relação com a profissão, “a relação com a escola não implica uma relação com o próprio saber” (CHARLOT, 2000, p. 55)
- os alunos de Massy também esperam da escola uma boa profissão, mas a relação com o saber é diferente;
- há casos em que o próprio saber levou à escolha da profissão;
- “A relação com a escola é então uma relação com o saber, pois o saber apresenta um sentido em si mesmo, ele pode ser importante sem ser útil, e pode mesmo ser importante e inútil.” (CHARLOT, 2000, p. 56);
- em Massy os alunos “vivem” na escola, não ficam esperando sair da escola para viver e sua escolaridade é pensada em termos de bases e de progressão do saber.
Processos de mobilização em relação à escola: a demanda familiar
·         a demanda familiar é um dos fatores que contribuem para a mobilização do aluno em relação à escola;
·         os discursos mostram a importância que as famílias dão ao sucesso escolar de seus filhos, mesmo aquelas que estão despreparadas tecnicamente para ajudá-los, sustentam uma mobilização no jovem em relação à escola;
·         os processos de mobilização utilizados pelas famílias s e diferenciam: alguns controlam, ajudam , “empurram” fazendo referência ao futuro, ao desemprego as dificuldades da vida; outras impõem metas tão absurdas que os jovens acabam paralisados e não as conseguem alcançar;
·         o que dá resultado parece ser ter confiança, ter orgulho dos resultados dos alunos;
·         a mobilização mais forte parece ser aquela quando o sucesso dos filhos é vivido pelos pais como se fosse a conquista do projeto que provocou sua migração;
·         o capital cultural transmitido pelas famílias tem efeito na relação dos jovens com o saber, mas não o determina, já que muitas crianças pesquisadas não conseguiam mobilizar esses conhecimentos em relação à escola;
 
 
Saint-Denis
Massy
Processos epistêmicos
- a partir dos inventários, os tipos de aprendizagem mais evocados pelos alunos de Saint-Denis estavam mais ligados às atividades quotidianas;
- os conteúdos não fazem muito sentido para os alunos, já que raramente são citados nos inventários;
- o aluno cumpre o programa, adquire capacidades (ler, escrever, contar) e outras aprendizagens que o tornarão capazes de se adaptar às diferentes situações;
- a relação desses alunos com o saber é o que eles constroem na vida cotidiana e levam para a escola (o eu permanece imbricado na situação);
- quanto à linguagem utilizada nos inventários: em geral os textos são curtos, com informações objetivas às questões colocadas; texto com poucos adjetivos, advérbios, julgamentos, opiniões, comentários;
 - tanto em Saint-Denis como em Massy, as meninas se referem mais aos aprendizados afetivos e de relações que os meninos;
- em Massy, ao contrário, os alunos evocaram mais os aprendizados intelectuais e escolares;
- os alunos são mais centrados nos aprendizados intelectuais e escolares;
- “Aprender é para eles apropriar-se dos objetos do saber, ter acesso a um mundo organizado em disciplinas no qual se progride a partir de boas bases.” (CHARLOT, 2000, p. 59) – objetivação-denominação do objeto de saber;
- eles mantêm uma relação com o saber e não apenas com o aprendizado;
- os inventários são textos mais longos, com argumentação, comentários, opiniões e posicionamento do aluno em relação ao saber;
 
 
Relação social com o saber
- a relação com o saber é uma relação social: em Saint-Denis, essa relação é muitas vezes tensa, o vínculo estabelecido com a escola exprime a necessidade de ter acesso a uma profissão, ter um a”vida normal”;
 
- em Massy essa relação com a escola é mais tranquila, mesmo entre os alunos com maiores dificuldades; almejam um futuro de sucesso,  mas aliado ao saber.
 

Nenhum desses processos (operatórios, epsitêmicos e social) determinam o sucesso ou o fracasso escolar, é a articulação dos processos que acontecem em cada história, com cada sujeito em sua singularidade e em relação com o mundo, que estruturam as relações com o saber.
O aluno não estudará se não ver sentido na escola, mas só a mobilização em relação à escola não é garantia de sucesso. Família, história escolar e outros processos precisam operar articulados para que essa mobilização torne-se efetiva.
 
Vivian A. Corrêa Braz

 
REFERÊNCIA

CHARLOT, B. Relação com o saber e com a escola entre estudantes de periferia. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 97, p. 47-63, maio 1996.

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