sábado, 12 de janeiro de 2013

Reflexões sobre pragmatismo, marxismo e educação.


Texto escrito por Renato Beschizza Valentin, durante o Verão de 2012.

 

Tendo lido algumas publicações sobre o pragmatismo de Peirce, Dewey e Charlott, e depois de haver debatido com pessoas que se debruçaram sobre escriturações de tais filósofos pragmatistas, cheguei à conclusão de que entre os apreciadores mais costumazes dessas leituras há uma tendência para a negação do marxismo, uma ligeira inclinação para considerar o marxismo algo ultrapassado ou inadequado para a resolução dos problemas mais cruciais e atuais do cotidiano dos professores que lecionam em escolas públicas – quando eu penso que a filosofia pragmatista fornece as bases filosóficas de uma postura intelectual adequada para lidar com o marxismo no processo de comunicação entre professores e alunos dentro da instituição escolar. No decorrer dessa reflexão, que tem por base e sustentáculo tudo o quanto consegui aprender ao longo da disciplina ministrada pelo professor Mauro Betti dentro do Programa de Pós-graduação em Educação da UNESP de Presidente Prudente, procuro enveredar pelo questionamento da experiência acumulada durante três anos nos quais tive a oportunidade de atuar como recreacionista e professor de educação física em escolas públicas cravadas em bairros pobres e de periferia na cidade de Catanduva, sob a perspectiva de traçar o esboço de um possível encaixe entre a postura filosófica de Pierce e dos pragmatistas e o marxismo, ou, melhor dizendo, o esboço de uma possível abertura da filosofia pragmatista, encarnada pelos professores escolanovistas dos tempos hodiernos, para as lições deixadas por Marx, Engels e Lênin.

            De Peirce, herdamos a concepção de que os indivíduos conhecem a si mesmos e ao mundo à sua volta através da produção simbólica, ou seja, na medida em que conhecem o mundo, os indivíduos raciocinam, falam, desenham, gesticulam, enfim, se expressam, para si mesmo e para os demais, a respeito do mundo conhecido, através da manipulação de signos dos tipos mais variados (verbais, não-verbais, ou gestuais, criptográficos, etc.). Ao emitir um juízo sobre um determinado objeto de conhecimento, sobre uma determinada coisa (entendida aqui no sentido que Durkheim atribuía a essa categoria, como algo dado da realidade que afeta os indivíduos e que, justamente pelo fato de afetá-los coletiva e individualmente, é tomado por eles como objeto de conhecimento, de especulação, enfim, de linguagem, de falação, de representação), o indivíduo mobiliza signos para representar as coisas na mesma medida em que atribui significados às coisas dadas a conhecer. O indivíduo que relaciona signos e atribui significados às coisas é o significante; enquanto que o resultante da relação significante entre indivíduo e coisa é o significado, ou seja, aquilo que uma coisa significa para certo(s) indivíduo(s).

            De posse da concepção de Peirce a respeito da imbricação inexorável entre conhecimento e linguagem, um professor de qualquer disciplina do currículo escolar deve estar atento aos signos verbais e não-verbais mobilizados pelos alunos e por ele mesmo nas suas relações com os alunos. Entretanto, mesmo os professores escolanovistas mais consequentes, entendidos aqui como os mais atentos e abertos aos ensinamentos de Peirce e dos pragmatistas, desprezam o marxismo e os marxistas, descuidam de suas principais obras e contribuições, muitas vezes sob a alegação de que os processos econômicos não determinam o conhecimento e a linguagem dos indivíduos tal como teria sido apregoado por marxistas que se aventuraram a opinar sobre as relações entre economia e cultura. Não se trata aqui de afirmar ou negar a existência de relações de determinação entre as relações de produção capitalistas e os modos de agir e pensar elaborados pelos indivíduos, mas de, sendo professor que leciona em escolas localizadas em bairros pobres e de periferia, fazer bom proveito dos ensinamentos e lições deixados por Marx, Engels e Lênin para se comunicar com os alunos e incita-los a conhecer o mundo à sua volta de tal forma a perceber como as relações de produção, de circulação e de acumulação das riquezas afetam a vida cotidiana dos alunos e seus semelhantes, mesmo nas suas manifestações mais corriqueiras, tal como a fala e a escrita. Senão, vejamos.

            Certa feita, tive uma sequência de rápidas conversas com a professora de uma turma de 5º ano do Ensino Fundamental I que encontrava sérias dificuldades para trabalhar em sala de aula com um dos conteúdos previstos pelo livro didático do grupo Positivo, que não passa de uma renomada camarilha oligopolista e imperialista de burgueses que possuem negócios e capitais no mercado editorial de livros didáticos. O conteúdo que não aprazia aos estudantes – mas que fazia parte da agenda de trabalho da professora – era as cantigas de cordel, oriundas do Nordeste brasileiro. A justificativa dada pelos autores do livro didático para a escolha das cantigas de cordel como conteúdo obrigatório das aulas de Língua Portuguesa do 5º ano do Ensino Fundamental I foi a de que vários alunos são elementos integrantes de famílias que migraram do Nordeste brasileiro para outras regiões do território nacional, e que, tendo em vista a seleção de conteúdos pertinentes à vida cotidiana de tais alunos de origem sertaneja e nordestina, seria de bom grado a utilização de cantigas de cordel nas aulas de literatura, de gramática e de sintaxe. Conversando com os meninos da turma em questão – notadamente os mais avessos às aulas nas quais a professora tratou das cantigas de cordel –, cheguei à conclusão de que a seleção e a abordagem das cantigas de cordel como conteúdo das aulas de Língua Portuguesa, do modo como foi proposto pelos autores do livro didático, decorreram não tanto de uma interpretação equivocada dos fenômenos migratórios, mas de um equívoco na seleção do conteúdo e, por conseguinte, na seleção dos signos e significados mobilizados pela relação comunicativa travada entre a professora e os alunos. De fato, a maioria deles constituía a prole de famílias que migraram do Nordeste para o Sudeste brasileiro, sob a perspectiva de escapar da seca, da miséria e da fome e competir por melhores condições de vida e de trabalho; todavia, não se tratavam de meninos nascidos e criados no sertão nordestino e que desde o berço ouviam cantigas de cordel sendo entoadas pelo canto de seus entes queridos: ao contrário, estamos falando de meninos de uma segunda ou terceira geração de famílias transferidas para o Noroeste paulista num fluxo migratório de alagoanos, baianos, cearenses, sergipanos à procura de uma oferta de trabalho no comércio, na usina, na fábrica, na empresa prestadora de serviços, e que, quando não atingem a meta, que é o emprego de sua força de trabalho no mercado formal, vão à procura de seu sustento na boca, na biqueira, na esquina, no mocó, no camelô, no bico, na zona, na rua. Alguns poucos nasceram e chegaram a viver a infância em regiões agrárias e agrestes do Nordeste brasileiro; estes sofrem o estigma do sotaque e do regionalismo na fala, ridicularizado pela zombaria dos meninos dotados de sotaque e vocabulário tipicamente urbano-industriais, de extração periférica e marginalizada. A esmagadora maioria desconhece os modos de agir, pensar e se expressar de tradição nordestina, ou os concebe como sinais de inferioridade humana, mesmo quando se fazem presentes nos modos de agir, pensar e sentir de seus avós e demais entes familiares. Os autores do livro didático não cogitaram a possibilidade de chegar ao cordel e ao fluxo migratório de nordestinos através da problematização de temas oriundos da experiência e da vida cotidiana dos meninos pobres que moram na periferia das cidades paulistas; tais autores não sabem que os meninos das famílias migrantes são apreciadores das canções de rap, ao ponto de alguns deles chegarem a colecionar várias caixas de sapato repletas de fitas cassete e discos compactos gravados e distribuídos clandestinamente. Tais canções de rap são decoradas e reproduzidas pelos alunos nos intervalos das aulas, na entrada e na saída do turno escolar, mas nunca durante as aulas, onde o professor poderia ter a iniciativa de abordar os assuntos evocados pelo rap através de um ponto de vista marxista e, mediante a mobilização de narrativas e formulações marxistas, mostrar que os percalços e as dificuldades do homem suburbano e periférico dramatizado pelas canções de rap são semelhantes aos percalços e às dificuldades do homem sertanejo e migrante das cantigas de cordel – avançando na discussão junto aos estudantes em sala de aula, talvez seja possível mostrar como a experiência da pobreza na periferia paulista e a experiência da pobreza no sertão nordestino apresentam semelhanças e paralelismos nas suas relações de mútua dependência com as transformações das relações básicas de produção e das formas de propriedade e de troca numa sociedade de classes tão desigual e antagônica como a nossa. E nessa empreitada a cultura popular e a história do povo brasileiro são dadas a conhecer, são socializadas e problematizadas de forma significativa pelos filhos do proletariado que ocupa os escalões mais desprestigiados e desprivilegiados da sociedade de classes no Brasil.

            (Para essa mesma turma de 5º ano do Ensino Fundamental I, cheguei a ministrar duas aulas de educação física destinadas a abordar e a discutir os processos de (des)nutrição com os alunos. Na primeira aula, mais agitada, foi feito um piquenique prenhe de frutas como melancia, maçã, banana, melão, morango, uva e pêra; durante o piquenique, os alunos tinham a liberdade de degustar as frutas (muitas das quais, desconhecidas por eles) e conversar a respeito desta experiência degustativa, enquanto que a tarefa do professor foi a de distribuir tabelas nutricionais, conversar com os alunos sobre as propriedades nutricionais e sobre o sabor dos alimentos ingeridos por eles, e de recomendar a eles que discutissem o conteúdo da aula com os seus pais, irmãos e demais familiares (obedecendo às recomendações do professor, as tabelas nutricionais, bem como as frutas restantes, foram levadas pelos alunos da escola para dentro de suas casas). Na segunda aula, a mais tranquila e silenciosa que eu já tive a oportunidade de lecionar, fiz uma exposição dialogada sobre fome e desnutrição, em relação a qual os aluno fizeram várias perguntas e colocações de grande interesse tanto para eles quanto para mim. Ao final dessa empreitada que durou duas horas-aula, os alunos conheceram e se expressaram a respeito das causas e das implicações da (falta de) alimentação, mobilizando narrativas, palavras, termos, categorias, enfim, signos verbais e não-verbais que constituem o universo simbólico do próprio aluno e/ou que constituem o arcabouço teórico e conceitual de tradição marxista-leninista).

            Esboçamos uma possibilidade de utilização prática dos ensinamentos deixados pelo marxismo sem deixar de levar em conta os ensinamentos de Pierce e dos pragmatistas a respeito das relações entre conhecimento, linguagem e experiência. Entre os professores escolanovistas, mais abertos ao pragmatismo peirceano e deweyano, ainda há quem desabone tanto a vulgata marxista quanto o marxismo erudito, sob a alegação de que os costumes e a linguagem não são determinados pela economia. Tais professores deveriam ouvir mais atentamente os versos da canção de Alceu Valença: “Você devia, deveria adivinhar que atrás do samba havia o semba/ Você devia, deveria adivinhar que atrás de tudo havia o açúcar/ Doce, doce, doce, como o mel/Doce, doce, doce, como o fel...”.

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