sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Uma leitura de "O enigma de Kaspar Hauser" a partir da Semiótica.


Lembrando-me do primeiro dia de aula, em que falávamos acerca das perspectivas antropológica, fenomenológica e semiótica e suas principais contribuições no que compete ao entrelaçamento entre os conceitos de sujeito, cultura, linguagem e aprendizagem; achei por bem indicar um filme que há muito assisti e que, em virtude das discussões levantadas em disciplina, concluí ser pertinente à reflexão sobre alguns conceitos com os quais trabalhamos.
O filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, do diretor alemão Werner Herzog, conta a história de um menino criado em um cativeiro que até a juventude não havia tido nenhum contato com qualquer ser humano ou qualquer experiência com a cultura. A existência de Kaspar Hauser é descoberta em 1828 na cidade de Nuremberg. A personagem desconhece a existência de outras pessoas, o significado dos objetos e a fala, até que um tutor decide responsabilizar-se por sua socialização. O filme, no geral, representa a luta da personagem no que compete à aquisição das primeiras experiências de vida, da fala, da representação do pensamento, de sua elaboração; enfim, da aquisição da cultura.  Talvez a expectativa do enredo seja exatamente essa, o momento em que Kaspar Hauser se torne civilizado, faça parte de uma cultura e tenha pleno domínio da linguagem, da produção dos signos e do saber.
O filme me parece interessante, pois permite a reflexão acerca de variados conceitos com os quais trabalhamos na disciplina “Entre os saberes docentes e os aprenderes discentes: questões teóricas e metodológicas”, dentre eles a própria Perspectiva Semiótica, as noções de Crença, Dúvida e Hábito; e os conceitos de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade.
A começar pela Perspectiva Semiótica, vimos que essa abordagem investiga todas as formas de linguagem, sejam elas verbais ou não verbais. A importância da linguagem está relacionada à noção de cultura, pois segundo Peirce, é através da cultura que significamos o mundo na qual estamos inseridos. Nessa lógica de pensamento, o sujeito é parte do universo e representa esse universo por meio da linguagem. Assim sendo, a cultura pode ser interpretada como a produção de signos, significados  e conhecimento, que favorecem nossa relação de experiência com a mesma, isto é, através de um processo de significação, conhecimento e produção de signos interagimos com os objetos, com as pessoas e com a natureza.
Os signos, segundo Pierce, estão manifestos nos sons, nas palavras, nos gestos, nos sentimentos, enfim; em qualquer coisa que represente algo para alguém. Nesse processo de semiose é imprescindível a relação  entre signo, objeto e interpretante; pois o signo é tudo aquilo que significa algo para alguém, o objeto é o fundamento do signo manifesto em uma palavra, forma ou imagem; e o interpretante diz respeito ao processo de representação, de significação ou interpretação que possibilita a produção e abstração dos signos.
Pois bem. Por meio da perspectiva semiótica reflito sobre a narrativa do filme “O Enigma de Kaspar Hauser” no que compete à importância da linguagem na interação que o sujeito estabelece com o mundo a fim de que as experiências com o mundo, ou seja, os resultados  cognitivos de nossas vivências, favoreçam a sua compreensão e significação. O filme exemplifica por meio do próprio enredo esse processo. As primeiras experiências de Kasper Hauser são com a linguagem. Através de um ardiloso percurso, a personagem se desenvolve no sentido de adquirir a linguagem, de ser capaz de produzir signos e de oportunizar a representação do seu pensamento.
Nesse sentido, a personagem luta para inserir-se na cultura através da linguagem. Esse caminho lhe é tortuoso, pois, embora outras personagens tentem auxiliá-lo, há uma discrepância na relação entre signo, objeto e interpretante, já que Kaspar Hauser compreende o que é o signo e o objeto, mas ainda não tem total capacidade para fazer uma abstração mais elevada e uma representação mental deles. Nesse sentido, o conhecimento da realidade fica barrado, em boa parte do enredo, pela impossibilidade de que a verdadeira aprendizagem, cara à noção de representatividade, não acontece.
Podemos exemplificar a trajetória do processo da aquisição da linguagem, da cultura e da representação dos signos ao longo de todo o enredo do filme, a começar pelo início em que Kaspar Hauser vive a experiência de pronunciar as primeiras palavras e escrevê-las em uma folha de papel. Suas primeiras aprendizagens giram em torno da escrita, da leitura e da pronúncia das palavras, como nas cenas em que um menino lhe ensina as partes que compõe o corpo humano. Ao longo de 2 anos Kaspar Hauser aprende, então, a dialogar e expressar o seu pensamento, além de adquirir habilidades básicas de tocar piano e tricotar. Dessa forma, a personagem socializa-se e começa a fazer parte da cultura à medida que se comunica e expressa seu pensamento.
Outras noções caras à teoria de Peirce são os conceitos de Crença, Dúvida e Hábito. Conforme vimos, a Crença corresponde às predisposições que levam o sujeito a agir; a Dúvida é fruto da relação de alteridade com o outro que faz com que as crenças sejam colocadas em dúvida; e o Hábito é a modificação das crenças de modo que sejam produzidos os costumes. A partir dessas noções, realizamos experiências com a cultura e modificamos nossas condutas. Nesse sentido, o filme demonstra os conceitos de Crença, Dúvida e Hábito na medida em que Kaspar Hauser, no processo de socialização, modifica várias vezes os seus hábitos em prol da contestação de suas crenças. Esses conceitos podem ser representados, por exemplo, nas cenas em que Kaspar Hauser tem que modificar seus hábitos selvagens em prol dos padrões de comportamento aceitos socialmente. A cena em que ele senta-se à mesa para fazer uma refeição ilustra essa hipótese. Kaspar Hauser era habituado a comer somente pão e tomar água. Sua idéia de refeição era somente essa, até que ele é impelido a degustar outros tipos de alimentos e líquidos. Sua primeira reação é de rejeição. Porém, à medida que lhe ensinam como manusear um talher e cultivar o sabor dos alimentos, então a personagem adquire o hábito e o costume de alimentar-se corretamente. A cena descrita ilustra, portanto, o entrelaçamento entre os processos de crença, dúvida e hábito que modificam a conduta da personagem.
Por fim, ressalto a importância dos conceitos de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, pois eles são fundamentais na interação que estabelecemos com o mundo e com a cultura. Nesse sentido, nossas experiências com o universo estão pautadas nos primeiros contatos e reações que temos diante dos objetos, essa é uma relação de Primeiridade. Se diante desse objeto algo nos desperta certa inquietação, que nos faz pensar  sobre ele, então estabelecemos uma relação de Secundidade com o mesmo. Por fim, quando há a abstração acerca desse objeto, ou seja, a representação que nos permite a sua compreensão, então, atingimos uma relação de Terceiridade.
Em “O Enigma de Kaspar Hauser”, essas noções podem ser visualizadas através de várias cenas, entretanto, ressalto uma em particular em que a personagem tem seu primeiro contato com a chama de uma vela. A primeira reação de Kaspar Hauser é de admiração, pois seus olhos acompanham a luz que o fogo provoca e sua mão tenta capturar o fogo. Em seguida, a personagem deixa sua mão sobre a chama e reage diante da dor que ela lhe provoca. Por fim, Kaspar Hauser chora constatando que a chama provoca alguma reação sobre o seu corpo. Nessa cena em especial é possível compreender as relações entre Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. Entretanto, em outras cenas, parece-me que a personagem só consegue intermediar entre as duas primeiras, pois a abstração acerca de um objeto não acontece, como na cena em que ele observa uma torre e conclui que  para construí-la é preciso possuir sua altura. Embora seu tutor lhe explique que há andaimes que possibilitam sua construção, Kaspar Hauser não crê que isso seja possível, pois não compreende como esse fenômeno acontece.
Assim sendo, através dessa breve análise acredito ser válida a relação estabelecida entre o filme “O enigma de Kaspar Hauser” e a Semiótica. Conforme visto em disciplina, a semiótica nos dá suporte teórico para compreendermos o entrelaçamento entre sujeito, cultura e linguagem no que compete à interação que estabelecemos com o mundo que nos cerca de modo que nossas experiências com a cultura sejam favorecidas pela linguagem, pois é com signos que atribuímos sentido às nossas vivências. No filme, esse entrelaçamento é evidente, já que no desenvolvimento de Kaspar Hauser seus esforços giram em torno da aquisição da cultura, do conhecimento e da linguagem como formas de conhecer e compreender o mundo da qual ele faz parte.



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