segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Análise do Prefácio do livro "A mistificação pedagógica", a partir das noções de “crença”, “dúvida” e “método científico (abdutivo-indutivo)” de Charles S. Peirce



            A introdução do livro "A mistificação pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação", de Bernard Charlot, se propõe a duas funções: (re)contar ao leitor o propósito da obra e o contexto em que ele foi escrito, na década de 1970; e, sobretudo, compartilhar "chaves" para que novos olhares possam ser lançados ao livro e as questões que dele emergem. Em especial Charlot chama a atenção para as formas atuais de mistificação pedagógica não existentes na época da elaboração da primeira edição do livro, como as supostas explicações biologizantes da aprendizagem decorrentes da neurociência e as apostas nas implementação das Tecnologias da Informação e Comunicação como solução definitiva para os déficits educacionais de nossos tempos.
            Entre as chaves citadas pelo autor para uma compreensão mais clara de suas ideias, Charlot oferece ao leitor um destaque a sua trajetória como pesquisador, marcada pela passagem das questões afetas a reprodução da desigualdade social pela educação ao planos do sentido humano de aprender. Neste ponto o autor, a meu ver, nos coloca em diálogo com aquilo que Charles S. Peirce, em seu texto "A fixação das crenças" (1977), definiu como o princípio do ato de pesquisar: o esforço empreendido para transitarmos do estado de dúvida à crença.
            Charlot (2013) afirma em sua introdução que:
"O autor do texto de 1975 não se atém a analisar; ele denuncia, indigna-se. O discurso pedagógico disfarça a desigualdade social em desigualdade natural e cultural: essa asserção é comprovada pela análise. Fazer isso é inaceitável: esse enunciado não é mais um resultado de pesquisa, é, sim, postura ética e política." (p. 46)

            Com essa afirmação Charlot apresenta a dimensão humana e política que atravessa sua publicação e, mesmo reafirmando-a como legítima, alerta ao leitor que esse ponto em sua obra não é movido por um princípio investigativo, por assim dizer. Há, evidentemente, uma causa com qual o autor se engajou e ainda se engaja, isto porque a existência da desigualdade social não é para ele alvo de dúvida, é fato, é habito de nossa sociedade. O que lhe é profundamente perturbador e questionável é se tal desigualdade é resultado de uma condição natural do homem. Contra essa dúvida Charlot dedicou suas primeiras pesquisas e, conforme descreve em seu prefácio, foi capaz de comprovar que a desigualdade social é fruto de uma condição humana histórica que é omitida nos discursos pedagógicos - tradicional e construtivista.
            Ao consolidar sua crítica, no entanto, Charlot reconhece que uma nova crença foi também consolidada na tradição sociológica francesa acerca da educação: cristalizou-se a ideia da reprodução social da desigualdade pela educação como chave explicativa para o fracasso escolar.  Novamente o autor foi clamado a colocar em dúvida parte desse saber que ele próprio desenvolveu no livro "A mistificação pedagógica" e disso resultou seus textos ulteriores, em que dedicou-se a relação dos estudantes com o saber.
            Nesse movimento, Charlot chama seu leitor para observar sua postura de questionamento ou de perquirição para com a realidade, afinal, por mais que os discursos pedagógicos por ele denunciados fossem reprodutores de uma condição de desigualdade social, e por mais que a escola fosse uma instância de reprodução social, haviam estudantes na realidade que driblavam as adversidades sociais e obtinham êxito. Novas dúvidas, portanto, convidaram Charlot a testar suas convicções. Houvesse o autor seguido o método descrito por Peirce como "método da tenacidade" para saciar suas dúvidas não teria ele até hoje mudado o foco de suas pesquisas iniciais.  Foi, portanto, por meio do método científico - aquele em que as crenças são convertidas em dúvidas, que por sua vez são testadas e válidas publicamente, produzindo novas crenças mais seguras à ação - que Charlot pôde avançar na produção de seu conhecimento.
            Desta forma, o prefácio de Charlot é exemplo de uma postura que toma o método científico abdutivo-indutivo como meio de passagem da dúvida à crença, interrompendo o que antes era habitual diante de novas tensões geradas pela realidade. Neste sentido, a postura de Charlot tem fundamento no que Peirce veio a denominar como método científico, ou seja, assumindo a pesquisa com a função de liberar a conduta de seu aspecto rotineiro, alargando continuamente o escopo da ação. Mais do que adaptação, perquirir é colocar-se no movimento intencional em busca de crescimento, de auto-aprimoramento e de exercício criativo no mundo.

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