domingo, 19 de outubro de 2014

O encontro com o Prof. Bernard Charlot foi marcado com a objetividade e posicionamentos sólidos acerca de parte do que ele propõe em seu Livro “A Mistificação Pedagógica: realidades sociais e processos ideológicos na teoria da educação”. A realidade social, num primeiro momento demarca sua fala, onde a mistificação pedagógica, segundo sua opinião continua sendo a desigualdade social na qual vivemos. Ele menciona que se existe a igualdade é porque existem as desigualdades, uma vez que observamos resultados desiguais. Charlot tece comentários acerca das pedagogias tradicional e nova, onde, ambas não consideram, em sua base, a realidade social da criança o que ainda se perpetua como a mistificação pedagógica atual. Na pedagogia tradicional, embasada no discurso da natureza humana, a criança nasce do pecado original tornando-se uma criança já corrompida (pelo desejo). À educação caberia, neste caso, libertá-la de seus desejos disciplinando-a com a inculcação de regras e luta contra o corpo, fonte de desejos, onde, se não houver a disciplina da razão, não haverá a disciplina do corpo. Assim, na pedagogia tradicional a criança é treinada a libertar-se de seus desejos, que a corrompe. A pedagogia nova lança mão de que a criança é naturalmente inocente, ela não é boa e nem má, quem a corrompe é a sociedade adulta que aniquila sua criatividade. Fortemente demarcada fica a questão da natureza humana que, com ideologias antagônicas, em ambas as pedagogias, a educação “é a luta contra a corrupção da natureza ideal do homem” e, assim, não deram respostas à desigualdade social existente, uma vez que elas mesmas dão conta de perpetuar essa realidade. No livro o autor faz menção e alerta para a questão de se pensar o indivíduo como “determinado por sua natureza humana”, onde se posiciona para o cuidado que temos que ter acerca desta visão inconsistente que as ideologias acabaram por perpetuar na escola. O que existe na verdade e o autor chama a atenção é para a existência de uma “condição humana” e sem determinismos.
Desta forma, justifica o caráter mistificador da realidade social em que as escolas continuam funcionando socialmente desiguais onde, por trás de uma pedagogia tradicional ou nova, não deram conta de possibilitarem um debate livre da referência à natureza humana. Mantêm-se viva, então, a perpetuação da divisão social do trabalho e as desigualdades sociais, pois considerar apenas a natureza humana e ocultar-lhe sua dimensão social, segundo o autor em seu livro “silencia as realidades sociais, encobre as desigualdades, aceita-as implicitamente e, muitas vezes, as legitima”.
Esse debate continua vivo e justifica a reedição do livro muitos anos após sua publicação, uma vez que ainda são muito presentes no debate pedagógico brasileiro atual discussões sobre a pedagogia tradicional e a nova, por conta das práticas educativas revestidas de contradições onde, uma expressiva parcela de professores não é capaz de identificarem-se tradicionais ou construtivistas, transitando por essas concepções, não sabendo ao certo como desenvolver seu trabalho, assim, seguem ideologias que não são suas, mas que o sistema acaba impondo. Essa situação está muito presente na escola e acredito que o professor deve estar atento ao mundo, às questões que se colocam na sociedade, sendo imprescindível sua tomada de decisão para firma-se enquanto profissional, mas consciente de sua ação no meio social, fato que exige sua profissionalização, constantes estudos, a busca pela formação continuada, ou seja, um dinâmico profissional que evolui juntamente com a sociedade, mas consciente do que fazer e como atuar em seu local de trabalho: a escola.
Dentre as questões tratadas fala também do aluno em rede. Em um mundo desenvolvido tecnologicamente acreditam que, basta-lhe ofertar um computador para  eliminar as dificuldades e problemas da aprendizagem deste aluno, o que também é uma grande mistificação, uma vez que não basta equipar as escolas com computadores se não houver profissionais atentos a saber lidar com esta ferramenta e com a consciência de que os  problemas da educação não serão resolvidos apenas com a informatização da educação. Sem dúvidas que são ferramentas necessárias, mas que não substituem o professor do saber que segundo o autor, em seu livro, diz de um profissional “guiando os alunos pelos caminhos do sentido são imprescindíveis para a sociedade contemporânea se torne mesmo uma sociedade do saber e não uma sociedade da informação”.
Charlot ainda coloca que há uma desigualdade social frente à escola, mas não há um determinismo histórico, conforme já mencionado neste comentário, onde a posição social subjetiva não é independente da posição social objetiva e quem quer pensar necessita de liberdade para isso, o que deve ser debatido no âmbito da escola. Declara que não é o meio social da qual a pessoa vive que determinará sua condição na escola e na vida e sim os meios com os quais ela terá acesso a toda e qualquer situação que a permita estudar e como ela irá estudar e se comportar diante desta situação, enquanto protagonista de sua história de vida inserido num meio.
 A história educacional é marcada pela aceitação da reprodução das desigualdades sociais, onde se legitimou ao longo dos anos essa situação e quando o discurso passou a ser o acesso à igualdade de oportunidades, a educação acabou por acentuar ainda mais as desigualdades. Numa perspectiva antropológica o indivíduo nasce em um mundo adulto, em um lugar no espaço e no tempo, em um lugar na história, na cultura, onde é protagonista de sua história e que não pode ser pensado sob a ótica das sociologias deterministas.  A educação, portanto, deve considerar essa perspectiva uma vez que ela é que faz a ponte entre a história da espécie humana passada, atual e futura, considerando um ser que está inserido em uma sociedade e que se constitui nesta.
Por fim, uma fala marcante de Charlot em relação a questão do sentido: “não há ato humano sem sentido”, estamos permanentemente fazendo uma interpretação do mundo. Ele ainda define sentido como sendo a “ação entre o motivo e o objetivo da ação, o resultado”. Portanto o que de fato traz sentido às pessoas, qual o motivo pessoal que as levam a buscar algo, a aprender algo? Na escola é necessário partir de um problema que faça sentido para a criança, o trabalho do professor é fazer “nascer questões” e não oferecê-las prontas. As crianças precisam de coisas para pensar, coisas que dão sentido. Relacionando à semiótica em que a construção de signos é constante, há um universo de semioses, resta refletirmos sobre o que estamos fazendo, ou como podemos fazer para que a escola deixe de ser marcada pela perpetuação das desigualdades sociais, da aceitação das naturezas humanas e dos determinismos (posição social objetiva), do fracasso escolar, etc. Charlot em seu livro coloca que “A educação é um fenômeno antropológico e não pode ser pensada sem referência ao que é um ser humano, mas este não é definido por sua natureza, mas por histórias articuladas: a da espécie, a da sua sociedade e a sua”, uma tríade que deve pautar-se num processo de construção de sentidos, mudanças de condutas a partir das consequências práticas vividas e que possibilitam uma visão crítica e autocrítica nos processos educativos, situações que envolvem a todos numa perspectiva de uma educação que promova uma melhor compreensão da realidade, objetivando relações de saber construídas nas relações com os outros, com a sociedade e cada um consigo mesmo.

Um forte abraço. Obrigada Bernard Charlot pela disponibilidade, entusiasmo para um dia inteiro dialogando e pela marcante presença. 
Raquel Pozzenato Silazaki. 

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